Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 05/01/2018 às 22:24
Pub.: 08 de janeiro de 2018

UM BANDO DE CABRUNCOS :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

Quem andou, por extrema precisão, pelas brenhas do Pau Seco, Toca da Onça, Riacho dos Ovos, Olhos D’Água do Catimbó e circunvizinhanças, deve muito bem ter conhecido Moitinha de Cima, cidadezinha dorminhoca, com uma igrejinha cai não cai, um quartel de polícia pedindo socorro e uma Prefeitura, que funcionava na casa do prefeito, como se ele fosse o dono daquele pequeno burgo de pessoas muito pacatas. Tão pacatas, que um crime de morte fazia quinze anos que não se registrava. Um furto, um roubo, perdia-se a conta dos anos que tais tipos de crimes se deram. Lugar de paz. Nem na vida política se davam conta de ocorrências que fossem além de um desentendimento deste ou daquele eleitor, lá entre eles, um bate-boca normal de tempos de eleição, mas, sem maior gravame. De anormal mesmo, nos últimos cinco anos, somente o rapto da menina Maria Clara por um filho do capitão Batista, dono do alambique Ferreirinha, onde se produzia uma cachaça louvada por todos. Afora isso, nada de anormal. A cidade era um brinco de sossego. Parada no tempo. E o povinho dali no tempo parado, salvo um ou outro movimento besta de nem chamar a atenção. 

Ah, mas o rapto de Maria Clara, em 1965, chamou a atenção da cidadezinha sonolenta! Um vespeiro em voos de desespero fez-se sentir na manhã em que Dona Floduarda, mãe de Maria Clara e esposa de Américo Mineiro, deu por falta da filha e esta não apareceu para o café da manhã. Um dia antes, Dona Floduarda ouviu um zun-zun-zun das bocas de duas vizinhas loroteiras. Mas, ela nem chite. A filha não tinha namorado. Não tinha, pois, porque ela se preocupar. O que não faltava na cidadezinha pacata eram línguas compridas demais. “Cabeça desocupada é oficina do diabo”, dizia ela, juntando a sua voz às vozes correntes. 

Maria Clara era a filha caçula de Dona Floduarda e de Américo Mineiro, que de mineiro só tinha o apelido. Menina cobiçada por qualquer rapaz de juízo. Flor desabrochando, orvalhada, em manhã de sol. Vestisse a menina com as cores da veste de Nossa Senhora, e dir-se-ia que era a própria representação da Santa Menina de Nazaré. Linda, meiga, solicita com quem de um obséquio dela precisasse. Quinze anos a serem completados no mês de São João. O rapto deu-se em fevereiro.

Somente no fim da tarde, Dona Floduarda recebeu um bilhete mal escrito, da parte de Zuleica de Bastião, prima do raptor, Terêncio do capitão Batista. Maria Clara foi deixada aos cuidados de Zuleica e de seu esposo Bastião, como convinha naqueles tempos e naquelas brenhas. Um rapaz de boa família ao raptar uma moça não a levava consigo de primeira, nem para a casa de seus pais. Embora, se levasse para a casa dos pais, ele, o raptor, teria que deixar a casa até o dia do casamento. Afinal, raptar não significava desonrar a moça, como se dizia por ali. E desonrar a moça significava desonrar a sua família. Era aí que, às vezes, o bacamarte fazia fogo. 

À boquinha da noite, Américo Mineiro e dois filhos arrumaram-se para tocar à casa do capitão Batista, para um dedo de prosa de pai para pai. Ele e a mulher nunca souberam que Maria Clara estava de namorico com Terêncio. Este, já tinha lá seus dezenove, vinte anos, e estudava na capital para ser doutor. Como eles se conheceram, não se sabia. Talvez no Natal, que ela passou na casa de uma tia, em Salto Alto, a maior cidade das redondezas, que dava cinco ou seis de Moitinha de Cima. Quando estava para montar no cavalo castanho, afogueado, eis que no terreiro de Américo Mineiro riscou o cavalo negro como carvão do capitão Batista. Veio sozinho. E veio em paz. “Boa tarde ou boa noite, conforme seja, ‘seu’ Américo Mineiro. Minha esposa Quitéria manda um abraço para Dona Floduarda. Estou desapeando, ‘seu’ Américo”. Desceu da montaria, segurando a rédea com a mão esquerda e estendendo a mão direita para Américo Mineiro. Este, após dar-lhe a mão, convidou: “Vamos entrar, capitão Batista. Julinho, você cuide do animal do capitão!”. 

Dona Floduarda, chorosa, recebeu os cumprimentos do capitão. “Eu soube, no meio da tarde, pelo meu filho Terêncio, que ele carregou sua filha Maria Clara. Peço desculpas pelo atrevimento do rapaz, que, como vocês sabem, está nos estudos para ser médico, na capital. Porém, o meu menino caiu nas graças da sua menina, no Natal, num piscar de olhos. Ele me confessou. E me pediu a bênção para casar com ela, como convém a gente direita como a gente, ‘seu’ Américo e dona Floduarda. Aqui está um pai, em nome do filho, para pedir a bênção de vocês”. 

O choro de Dona Floduarda ficou preso na garganta. Ela bem que quis dizer algo, mas, não poderia causar uma desfeita ao marido. O chefe da família era quem tinha a voz ativa. Primeiro ele. Américo Mineiro ajeitou-se na cadeira. Pigarreou. “Capitão Batista, a gente também nunca soube desse namoro de um piscar de olhos entre os nossos filhos. Afinal, pelo que a gente sabe, eles nunca se encontraram antes do Natal, antes desse piscar de olhos, como o senhor disse. Uma surpresa! Ainda mais por causa da idade dela, que nem quinze anos completou. Ela é a nossa caçula, como o senhor bem sabe. A nossa ponta de rama. Sem desmerecer os nossos outros cinco filhos, Maria Clara é o nosso xodó, meu e de Floduarda. E dos irmãos e irmãs dela também”.

O calor daquela boca da noite de fevereiro abrandou um pouco com um ventinho adentrando pela porta e janelas da varanda da casa. Disse o capitão Batista: “O meu filho Terêncio teve a quem puxar. É um menino respeitador, embora, tomado pelo coração, levou com ele a mulher que ama, na calada da noite, e sorrateiro como um ladrão. Mas, como vocês já sabem, ele deixou a menina na casa da minha sobrinha Zuleica e do seu marido Bastião, pessoas honestas e do meu maior agrado. Com a bênção de vocês, de lá ela só sai para a igreja, no dia marcado. E, por enquanto, lá ele não bota os pés. Respeito é respeito”.

Tudo acertado. O menino Terêncio deixou-se arriar dos quatro pneus pela formosura, pela graça e pela iluminação da menina Maria Clara. Por sua vez, ela também se deixou tocar pela altivez dele, pelo olhar embriagador, que lhe pareceu tão sincero, apesar dos seus poucos anos e da sua nenhuma experiência com um rapaz. Para aquilo, o povo chamava de amor à primeira vista. Havia quem acreditasse. Sem tirar nem pôr isso ou aquilo, Maria Clara e Terêncio formavam um belo casal. O casamento foi marcado junto ao padre Genário Peixoto da Conceição, o padre Peixotão, bom de garfo e copo como ele só. No cartório, o casamento seria feito quando Maria Clara completasse dezesseis anos, idade necessária, segundo disse o escrivão. 

Festa de arromba no casarão do capitão Batista. Américo Mineiro fez questão de dividir as despesas. Em princípio, o capitão não quis concordar com a divisão. A festa era do pai do noivo. Porém, Américo afirmou que o pai da noiva não ficaria satisfeito se não partilhasse as despesas. Ele também era pai. Enfim, tudo se acertou. No meio da festa, com o jovem casal deslumbrado um com o outro, o padre Peixotão propôs um brinde: “Vamos brindar ao mais belo casal de Moitinha de Cima e às duas famílias mais burguesas destas bandas!”. Foi um alvoroço de “Vivas!”. Para bem dizer, o capitão Batista e Américo Mineiro eram os homens de melhores posses dali. Burgueses? Isso era com o padre.

Tefinha de João Beiço Mole perguntou a Sá Mirandinha do finado Juca Prego Solto: “O que quer dizer burguesas?”. A resposta: “Deve ser um bando de cabruncos”. As duas soltaram uma estrepitosa gargalhada. Ia-se lá saber o que eram! Ora, bolas.

PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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