Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 19/01/2018 às 23:48
Pub.: 22 de janeiro de 2018

UM JORNALISTA MENTIROSO :: José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)

José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)

Buraco da Capivara amanheceu em festa. Foguetório subindo aos céus desde as cinco horas. Foguetes de resposta, daqueles de três tiros mais amenos e um, o de resposta, de tinir, de estourar tímpanos. Foguetes do mestre Euclides Fogueteiro, como era conhecido e respeitado o fabricante de fogos de artifício da cidade. Por duas vezes, a tenda dele fora aos ares. Nos dois casos, em plena madrugada. Ninguém na tenda. Ninguém por perto. Danos materiais. Totais. Nas duas vezes, o povo se juntou para dar o seu adjutório ao mestre fogueteiro. Bem feito.

Muita gente foi apanhada de surpresa com tantos foguetes, acordando grande parte da cidade envolta numa névoa fina, prenunciadora de muito calor no correr do dia. A grama da Praça do Bode estava molhada. Abundante orvalho durante a madrugada. Tercino Boca Mole morava ali na praça. Espreguiçou-se na cama. Praguejou. Um filho de Deus já não podia mais dormir em paz? Mundo cruel. O que estaria acontecendo? Não era dia de Nossa Senhora das Candeias, nem do aniversário da cidade. Teria nascido menino de gente rica? Só podia ser. Tercino passou a mão no canto da boca, onde a papa dos anjos se alojava. Tornou a praguejar: “Inferno!”. Levantou-se, antes, porém, persignando-se. Vestiu a calça de mescla azul. Abriu a janela. Os passarinhos já se alvoroçavam nos pés de pau, nas fruteiras. Um assanhaço bicava, bem do seu, um mamão de cheiro, madurinho, madurinho. Dia que prometia ser bonito. 

Enfim, o foguetório estancou. Lá para as tantas, depois do café da manhã, Tercino Boca Mole foi informado por Janjão Coceirinha que “seu” Melquíades do Armazém estava comemorando a abertura do jornal “Semanário Capivarense”. Aquilo não era coisa que pudesse ir longe, avaliou Boca Mole. Onde já se viu um jornal numa cidade que nem Correios tinha? Que só dispunha de marinete para a capital duas vezes por semana? Que o padre só celebrava missa uma vez por mês, vindo de outra Freguesia? Um jornal! “Seu” Melquíades era metido a ser doutor. Lia os jornais da capital e umas revistas que Milton da Marinete lhe trazia regularmente. E livros. Lia muitos livros. Um desperdício de dinheiro e de tempo. Para que tanta sabença? Nem professor ele era. Vivia de vender os produtos do seu armazém pela hora da morte. Lia para ficar mais esperto na hora de arrochar nos preços. Só podia ser. 

O “Semanário Capivarense” seria impresso na capital. Um jornalista amigo do filho mais velho de “seu” Melquíades, que estudava para ser médico, seria o encarregado da impressão e de tudo o mais que um jornal carecia para correr de mão em mão. As assinaturas começaram a ser feitas, naquele dia. Ao final da tarde, dizia-se que estavam certos mais de cem exemplares por assinatura. Os demais seriam vendidos avulsos no armazém “Flor do Agreste”, que o povo apelidou de “Fulô da Carestia”. Tudo ali era vendido pelos olhos da cara. 

Na semana seguinte, saiu a primeira edição do jornal “Semanário Capivarense”. Na capa, uma foto de “seu” Melquíades, vestindo um terno de risca de giz. Sorriso ancho de um sujeito vitorioso. A manchete: “EMPRESÁRIO CAPIVARENSE PENSA NO SEU POVO”. Dia agoniado na cidade. Todo mundo queria ler ou ver o tal jornal. Mesmo quem não sabia ler, mas tinha posses, comprou um exemplar. Jornal magrinho, de apenas quatro páginas. Porém, era um jornal. Novidade para uma cidade como Buraco da Capivara. “E um avanço!”, como berrou Totoinho Cachorrada, cunhado de “seu” Melquíades.

No começo, parecia que não, mas, o jornal de “seu” Melquíades tomou corpo e passou a circular nas cidades circunvizinhas. A tiragem já passava de trezentos exemplares. Até o deputado Dr. Francisco Chagas deu para botar sua cara no jornal com estes dizeres: “Deputado Dr. Francisco Chagas – O Amigo Que Não Lhe Deixa na Mão”. Deputado do PR. Lucas de Mirandinha, um puxa saco do povo da UDN, escreveu no seu exemplar, abaixo da propaganda do deputado: “Este Lhe Deixa a Pé”. 

Vários pequenos empreendimentos das redondezas passaram a anunciar no “Semanário Capivarense”. O jornalista Carlos Nogueira, editor, redator e revisor do jornal, conseguiu à custa de boa comissão, alguns anúncios de lojas importantes da capital. Três ou quatro. O jornal ia se mantendo. “Seu” Melquíades não cabia em si de tão contente com o seu novo empreendimento. 

Eleições estaduais à vista. O jornalista Carlos Nogueira alinhou o “Semanário Capivarense” ao bloco formado pelo PSD/PR. Aliás, era o bloco no qual “seu” Melquíades votava. Tudo certo. Naquela época, os jornais tinham lados definidos. E os candidatos podiam veicular seus nomes à vontade. Não havia proibições legais. 

As eleições para governador do estado foram vencidas pelo candidato da UDN. Era a primeira vez que os “caras pretas” ganhavam dos “rabos brancos”. Buraco da Capivara entrou em rebuliço. O prefeito Antônio de Zeca Marques era do PR, portanto, um “rabo branco”. Os “caras pretas” soltaram traques-bombas na rua onde o prefeito morava. Antônio de Zeca Marques não estava em casa naquele momento. Dona Sinhazinha, sua esposa, ainda pegou em arma para espantar a turba. Saiu porta afora de rifle na mão. O sargento Bico Fino, que por ali passava, e era da UDN, ao contrário do tenente Marcelo Bezourão, que era, por raiz de família, da PSD, impediu que a velha senhora se metesse em confusão. 

O resultado das eleições saiu na quinta-feira. O “Semanário Capivarense” circulava na terça-feira. Logo, na semana seguinte, o jornal de “seu” Melquíades anunciou em primeira página: “COLIGAÇÃO RUMO CERTO VAI ANULAR ELEIÇÃO”. Festa dos “rabos brancos” de Buraco da Capivara. Foguetório. Cachaçada. Confusão. Bate boca. Briga. Faca e tiros. Nenhum morto, felizmente. 

Toda semana o jornal trazia uma manchete sobre a anulação da eleição. “UDENISTAS APREENSIVOS. ELEIÇÃO SERÁ ANULADA”. “COMPROVADA FRAUDE NA ELEIÇÃO. UDENISTAS FICARÃO A VER NAVIOS”. “TRIBUNAL VAI ANULAR ELEIÇÃO. SÃO FAVAS CONTADAS”. E coisas desse tipo. Mas, chegou o dia da posse dos eleitos. Posse realizada com uma festança talvez nunca antes vista na história política da capital. 

No dia seguinte à posse do governador e dos deputados, transmitida pelas emissoras de rádio, menos, claro, a do grupo derrotado, Dona Eufrásia de Chico Ferreirinha, professora aposentada, dirigiu-se ao armazém de “seu” Melquíades e perguntou ao proprietário do “Seminário Capivarense”: “Ô ‘seu’ Melquíades, o seu jornal é mentiroso. Disse uma porção de vezes que a eleição ia ser anulada. E os homens não tomaram posse? Mentira pura. Enganação. Isto é feio, homem de Deus. Vou mandar cancelar a minha assinatura. Um jornal mentiroso não serve, não merece respeito”. 

“Seu” Melquíades gaguejou. E respondeu: “Dona Eufrásia, o jornal não mente. Quem mente é o jornalista, cuja mulher tem um cargo muito bom que o senador Alcides Valença lhe deu, já que não fica bem botar o cargo no nome do próprio jornalista. E, politicamente, ele escreve o que o senador manda”. A professora Eufrásia, impassível: “Ah, é assim? O jornal é seu ou do senador? Pois o senhor faça-me o favor de cancelar a minha assinatura. E se me quiser de volta, trate de conseguir outro jornalista. Um que não seja mentiroso”.

PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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