Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 03/03/2018 às 20:34
Pub.: 05 de março de 2018

UM FILHO PERDIDO? :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)

José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)

Silêncio. Depois que o garoto partiu, restaram lágrimas e silêncio interior. O pai sentou-se no meio-fio da calçada com os pés na sarjeta por onde escorria uma água lodosa, negra e fétida. Mas, aquilo não lhe incomodava. O seu pranto foi aumentando. As vozes da noite, que vinham de todos os lados, macularam o silêncio interior. Um homem se destroçava naquela noite que nascia e que encobria o mundo com seus negros véus. Emocionalmente, já não era um homem. Era apenas um farrapo humano, que lamentava naquela calçada, naquela sarjeta. E era como se as suas copiosas lágrimas aumentassem aquele lodo que escorria.

Minutos antes, pai e filho estiveram abraçados por longos minutos. Pareceu-lhe uma eternidade. Nunca abraçara o filho como naquele momento. Nunca sentira o seu coração tão perto, a bater tão forte, embora descompassado. Nunca o pai se sentira tão pai. E pelo aperto do abraço do filho, certamente, aquele sentimento era recíproco. Pai e filho se encontravam pela primeira vez em muitos meses. Não estavam morando em cidades diferentes. Estavam onde sempre estiveram, na cidade grande, em que ventosas de tentáculos terríveis sugavam os filhos. O seu filho era um deles.

Marcinho sumira de casa há oito meses. De início, andou estranho em casa, escondendo coisas, vivendo pelos cantos, trancado no quarto, metido na internet. Depois, deu para sair com amigos que a família não conhecia. “São meus amigos, mãe! O que é que tem?”. A mãe tirava por menos. O pai trabalhava dia e noite em dois empregos, para dar uma vida mais amena à mulher e ao filho único. Escola particular. Plano de saúde. Tudo pela hora da morte. A mulher também trabalhava. Somavam esforços para que o filho tivesse um futuro garantido por meio dos estudos. De repente, o filho adorado fez-se no mundo. As drogas levaram-no para o lado escuro da vida.

Quando os pais se deram conta, Marcinho estava numa situação desesperadora. A casa foi ruindo. O garoto de 15 anos deu para emagrecer. Médico? “Precisa não, mãe. Eu tou bem. Só ando com fastio. Vai passar”, dizia ele. Não passou. E não tardou a virar um quase morto-vivo. Enfim, saiu de casa. Aparecera umas poucas vezes, enquanto o pai não estava em casa. Precisava de dinheiro. Acabou por surrupiar alguns bens de pequeno porte para fazer dinheiro. Por fim, sumiu de vez.

O pai andou de rua em rua, de beco em beco à sua procura. Foi à polícia. Andou pelas bocas de fumo, pelos pontos de crack. Levou carreira de drogados e de marginais. Chegou a apanhar numa noite chuvosa em que procurava o filho numa conhecida boca de fumo controlada por um traficante de alcunha Grilo de Fogo. Nada. Ninguém lhe dava notícias do filho. Depois, soube que uma viciada muito conhecida no submundo da cracolândia do centro da cidade o teria seduzido. Mas, ela tinha sido morta num ajuste de contas. Ela e um comparsa. Os corpos? Ninguém sabia o paradeiro. O comparsa seria Marcinho? Desespero do pai e da mãe. Novas buscas. Na assistência social da Prefeitura, no IML. Nada.

Uma vida perdida? Não para aquele pai. Nem para a mãe. O pai não se deu por vencido. Queria o seu filho de volta. Em qualquer estado em que ele se encontrasse. Era o seu filho. Único. Sentia-se responsável por aquela situação. O trabalho lhe absorvia dia e noite. Porém, era pelo bem da família, era pelo futuro do filho. Se ele tinha negligenciado nos cuidados de pai, não o fizera propositalmente. Todavia, aquela situação lhe pesava nos ombros, na consciência. Muitas vezes, não tivera tempo para levar um papo com o filho. Quando este queria ir ao futebol, o pai estava indisposto, cansado. O filho ia com os amigos. O dinheiro para o buzú, ingresso e lanches não faltava. Porém, aquilo só bastava?

A mãe, embora desvelada como todas as mães, ou quase todas, sempre tirava as coisas por menos. Aliviava a barra do filho, quando este começou a faltar às aulas e o pai recebeu telefonemas da direção da escola. Ela sempre arranjava um jeito de arranjar uma desculpa, encobrindo o quão faltoso e disperso o filho andava. Na rua onde a família morava, Marcinho não era o único garoto de sua idade ou de idade aproximada que estava naquela vida. As drogas consumiam os filhos e as filhas de todas as camadas sociais. Bandos de mortos-vivos, completamente entregues às drogas e, especialmente, ao ckack vagavam pelas ruas, praticando pequenos delitos.

A violência por si mesma já avolumada crescia ainda mais a par das drogas. Os governos, despreparados, davam desculpas, apresentavam estatísticas fictícias, enfim, não tinham o que dizer, porque não tinham planejamento de segurança pública que validasse ações efetivas na prevenção e na repressão. Uma cidade perdida. Um estado perdido. Um país perdido, um mundo perdido, diziam alguns, especialistas ou não. Afinal, todos tinham o que dizer ou como opinar. A oposição ao governo, então, lascava nas emissoras de rádio, nos jornais, nas redes sociais. A segurança estava um caos. E a grande metrópole ia engolindo os seus filhos e as suas filhas, para vomitá-los numa vala, num necrotério ou noutro lugar qualquer.

Naquela noite, o trabalhador Antônio Marcos encontrou o filho a quem procurava há oito meses. Atravessando uma avenida central, eis que o avistou do outro lado. Aumentou os passos. Gritou o nome do filho, um morto-vivo. Marcinho, ao reconhecer o pai, quis correr. “Espere meu filho!”, gritou o pai. Ele esperou. Já não era o seu filho, forte, belo, bem criado, como o pai supunha. Era o que dele restava. O pai o abraçou, chorando. “Meu filho! Meu filho! Meu filho!”. De início, Marcinho ficou imóvel entre os braços do pai. Aos poucos, porém, ele também o foi abraçando. Caiu em prantos. Eram dois a chorar.

Um pouco depois, o pai tentou conversar com o filho. Este, como que entre assustado e alheio, o olhar vidrado, não dizia nada. O pai lhe falou do sofrimento dele e da mãe pela ausência do filho único, do eterno bebê que ele era. Falou da clínica na qual pretendia interná-lo para a devida recuperação. Falou do futuro que ele ainda teria, estudioso que fora antes de cair no mundo lodoso das drogas. Falou, falou, falou.

Marcinho lançou-se nos braços do pai e balbuciou: “Pai, me perdoa. Me perdoa, pai. Diga à mãe que eu já morri. Eu amo vocês dois. Me perdoa, pai. Acabou, pai, acabou!”. E voltou a cair em pranto. O pai, desesperado, respondia que nada estava perdido. “O pai vai cuidar de você, meu filho. Eu e a mãe vamos lhe salvar desta vida”. De repente, Marcinho se desvencilhou dos braços do pai e saiu em disparada. Atravessou a avenida por entre os carros que paravam de chofre e buzinavam, sem que ele pudesse se dar conta que o sinal estava fechado. Sumiu na esquina próxima.

E foi assim que aquele pai se achou, naquela calçada, naquela sarjeta que escorria lodosa, entre lágrimas e silêncio interior. Silêncio perturbado pelas vozes da noite. Pelas vozes da vida. Mas, para ele, nem tudo estava perdido. Ele era pai. Ele tinha um filho. Pelo filho, ele continuaria indo à luta.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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