BERLINDA :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: arquivo pessoal)
Não é nada contra Dona Berlinda, que, por sinal, é uma pessoa distinta, embora esquentada. Tenho contra o nome. Já pensaram o seguinte: Dona Berlinda está na maior berlinda? Danou-se.
Dona Berlinda (que Deus a tenha em sua santa consideração!) cismou de levar a filharada, sete ou oito, sei lá, com o marido Zé Cotia de Nilton da Gameleira para tomar banho de mar, em pleno carnaval. E a praia ficava perto? Mais ou menos. Eram somente trinta léguas, ou seja, cento e oitenta quilômetros. Como se diz no sertão, esticando o beiço inferior: “É logo ali!”.
Zé Cotia era caminhoneiro. Tinha lá de seu um velho caminhão Dodge, mais fumacento do que a fornalha da olaria de “seu” Firmino do Pau Miúdo, um povoadozinho de bom massapê e bons capinzais de capim sempre verde, bons demais para engordar bois. Ah, um pedaço de mamilo (lá pras bandas do Sul se diz “cupim”) assado na brasa com um molho de pimenta malagueta, um bocado de farinha e uma cervejinha mais do que gelada, é uma gostosura de engordurar os beiços e as tripas! Mas, lá pro Sul mamilo é peito. E por aqui cupim é bichinho comedor de madeira. Coisas da língua portuguesa falada aqui ou ali.
Família trepada no velho caminhão, na boleia o motorista, a mulher e Netinha, a filha caçula de dois anos. Na carroceria, além das outras filhas iam alguns vizinhos. Gente de toda idade. Até “seu” Caçulo NêgoVéio, beirando os 90 anos meteu o pé na escadinha providencial e aboletou-se no caminhão fumacento. Papocaram no oco do mundo. Era madrugadinha. Não passava das três horas quando o motor do caminhão de Zé Cotia deu sinal de movimento.
O mar lhes esperava. Praia do Pontal da Baleia. Naquele tempo, era quase deserta. Hoje, em pleno ano de 2018, já está tomada por casas de ricaços. Há até mesmo uma briga na Justiça para desmanchar tudo que foi construído. Briga de grandes, meu senhor. Meto-me nisso, não! Sou pequeno. Em briga de cachorro de raça, de pedigree, vira-lata não chega perto. Mas, não é isso o que interessa. O que tenho a relatar é a viagem à praia do povo de Zé Cotia.
Para começo de conversa (ainda estou no começo, claro), o caminhão de Zé Cotia estava com o retentor meio furado. Dava um trabalhão danado. Porém, Zé era cuidadoso. Ele mesmo se metia a consertar todo defeito que aparecia. Às vezes, não tinha jeito de consertar. E, então, ele recorria aos préstimos de Cidão Mecânico, que conhecia como a palma da mão todo tipo de motor de carro. Carro de qualquer marca, se engasgasse ele desengasgava. Nunca fora a uma escola de mecânica. Aprendeu ao Deus dará, na curiosidade, no fazer fazendo.
Ao bem da verdade, e verdade deve ser dita, vinha gente até da capital para consertar todo tipo de carro, pequeno e grande. Cidão tinha nome nos quatro cantos do estado. Trabalhava sozinho, sem ajudantes, a não ser o sobrinho, Tucaninho de Zé Tucano, que era danadinho de esperto no alto de seus treze anos. Dona Berlinda e Zé Cotia não tiveram filhos. Eram sete ou oito filhas. Zé era do tipo galo “femeiro”, como se dizia por aquelas bandas lá deles. “Seu” Abílio era quem tinha uma receita para fazer menino ou menina. Dizia ele que funcionava. Disso, contudo, eu não sei nem dou prova.
Voltei a enrolar os leitores. Afinal, onde está o relato da viagem de Zé Cotia com a família e os vizinhos para a praia do Pontal da Baleia? E por que o título deste escrito besta é Berlinda, se até agora Dona Berlinda quase não apareceu? Não fez nada que merecesse dar título ao escrito. Ainda bem que os leitores não são do tipo esquentado como Dona Berlinda, que por qualquer coisinha de nada já saía soltando fumaça pelas fuças. Vou ao caso. Agora, eu vou.
Madrugada escura, estrada de chão batido. Poeirão perdido nos véus da madrugada. Aqui e acolá, um cachorro latia, um galo atrevia-se a cantar, seguido por outros galos. Um vulto a cavalo, trotando na direção contrária ao Dodge de Zé Cotia. Nada além daquilo.
De repente, Zé Cotia cutucou a mulher, que cochilava com a criança no colo: “Ô Berlinda, acorde! Tenho uma coisa pra lhe contar: eu acho que o filho de Maria de Tonho Argolinha é meu”. Dona Berlinda quase salta do caminhão. “O quéquê tu tá me dizendo, Zé? Que tu andou de safadeza com aquela amarela enxofrada, que num tem peito nem anca? E como é que tu pode ser pai de um menino, se tu só presta pra fazer menina? Pois com o meu defunto primeiro marido, antes de tu, eu num tive Claudinho, que Deus o tenha no seu Reino, juntamente com o pai, Chicão de Ataíde? Então sou eu que num presto pra fazer filho homem? Tu é que num sabe esquentar direito pro lado certo como diz “seu” Abílio. Nem pra tomar umas lições com ele, tu nunca prestou. E vem agora com essa do fio de Maria de Tonho Argolinha! Matão de Dentro agora tem mais um corno e uma corna? Arreda, Zé Cotia! Eu nunca que botei gaia em Chicão de Ataíde nem em tu, que sou muié direita de tinir, como tu mesmo confia, o povo atesta e Deus sabe mais do que todos. E gaia eu num aceito, enfeitando a minha testa”.
Dona Berlinda entrou nos azeites. Zé Cotia seguia guiando na mais pura serenidade. E Dona Berlinda continuou soltando os cachorros no marido. A criança acordou. Fez voz de choro. A mãe agoniada como estava, procurou a chupeta, que somente achou a muito custo. A menina calou-se. A mulher de Zé Cotia estava mais braba do que cobra salamanta. A garapa tinha azedado. Zé Cotia continuava sereno. “E tu acha de me contar essa sua cachorrada logo agora, quando a gente pensava em dar diversão às crianças, na praia, que é uma novidade para elas!?”, grunhiu Dona Berlinda. “Home, eu acho que o corno é tu. Se aquela lambisgoia disse que o fio é teu, ela tá é te tapeando, para pegar pensão. Tu haverá de pagar pelo que num é teu. Mas, é bem feito. Quem procura vadiação com uma vagabunda, um vagabundo se torna”.
Mais quente a boleia do caminhão não poderia estar. O fogaréu que queimava a titela de Dona Berlinda era mais alto do que o fogo que consumiu os capinzais de Mamede de Juliana, um mês antes, queimando inclusive o curral e casa de moradia do vaqueiro. Fogo brabo, que não teve como apagar antes de consumir tudo que Mamede possuía, menos o gado, que deu tempo de salvar. E ainda queimou partes das fazendas de Geraldo de Manezinho e Valdemar Guedes. O fogo de Dona Berlinda ardia muito mais.
Logo ali, uma curva fechada. No balanço, Dona Berlinda derreou-se para o lado do marido. Este soltou uma gargalhada. E disse: “Tu tá querendo encosto, Berlinda?”. Ela respondeu com uma quente e duas fervendo. Naquele instante, Zé Cotia jogou um oceano de água na fervura de Dona Berlinda: “Tenha calma, muié! Eu tô de fuzuê consigo. Eu disse que o menino é meu fio porque ele puxa da perna como eu. Cada um por uma causa diferente”. E gargalhou de novo.
Tudo resolvido. Chegaram à praia. Uma lindeza! Dona Berlinda, que nunca tinha visto o mar disse a Zé Cotia: “Tu tá vendo essa grandeza de água, Zé? Se o negócio do menino fosse certo, se ele fosse mesmo teu fio, essa água toda num ia dar pra apagar o fogo que eu ia meter em tu”. Zé Cotia olhou para ela. Olhou para o mar e disparou: “Armaria, Berlinda. Eu preciso tomar cuidado com tu!”. Ela respondeu: “É bom que tome!”.
PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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