UM AVÔ ARREPENDIDO :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
Catolé de Cima. Cidade do mais alto sertão, mas, banhada por um mimoso riacho, que botava cheias homéricas nos bons invernos e nas melhores trovoadas. No estio, porém, as secas costumavam se prolongar, esfolando o povo, e o riacho tornava-se lama e, depois, areia a cobrir o leito morto.
No Catolé de Cima, reinava o coronel Benildes Fonseca, apelidado pelo povo de Benildes Não Perdoa. Antigo chefe político, e, mais uma vez, prefeito, casado tardiamente com uma neta do Barão da Lagoinha. O casamento do coronel juntou fortunas. Dona Marieta, a neta do Barão, era herdeira de terras, gado e comércio. O casal tinha uma única filha. Dois partos de Dona Marieta não vingaram. Dois meninos morreriam antes de completar seis meses neste mundo. Restou ao casal Maria Clara. Formosa menina, que se tornou uma moça encantadora. Educada no colégio das freiras, na capital, era uma moça refinada. Tocava piano e escrevia versos.
O coronel Benildes tinha a pretensão de casar a filha Maria Clara com um filho do também coronel Zeca Borborema, atilado chefe político da cidade vizinha, Catolé de Baixo. Benildes queria netos que substituíssem os filhos que não os pôde ver criados. Os dois coronéis, Benildes e Zeca, eram do mesmo agrupamento político, desde os tempos dos seus respectivos pais, nos idos do Império de Pedro II. Houve uma aproximação, ou tentativa, arranjada pelos pais, entre Maria Clara e Rodolfo Borborema, um tabacudo fanfarrão e grosseiro, sem estudos de valimento. O máximo que Maria Clara conseguiu fazer foi abrir um sorriso forçado, na hora dos cumprimentos. Aquele casamento arranjado não daria certo.
Uma estrada estava sendo aberta entre Catolé de Cima e Brejinhos dos Pretos. O engenheiro João Fortunato, recém-saído da Faculdade, era o encarregado da obra. Ao apresentar-se ao prefeito Benildes Não Perdoa, o jovem conheceu Maria Clara. Olhares cruzados. Corações descompassados. O namoro entre os dois não pôde começar. A filha de Não Perdoa estava comprometida com um grosseirão, mas, sem o seu bem-querer.
Às escondidas, trocou bilhetes com o engenheiro. Uma temeridade. Ao término da obra, que durou oito meses, o engenheiro Fortunato raptou Maria Clara. Tomaram o rumo da capital. Em carta, Maria Clara pediu perdão ao pai e pediu a sua bênção para o casamento. O coronel Benildes não respondeu. Alardeou na cidade que não tinha mais filha. Sentiu-se traído pela filha e desonrado pelo engenheiro que, na língua dele, não passava de um “engenheiro de bosta”, um pé rapado, um desonrador de família. O coronel passou noites sem dormir. Não aceitava a desfeita da filha, o desaforo do engenheiro. Decidiu, enfim, tomar uma providência dura. A mais dura de sua vida. No Catolé de Baixo, o prometido de Maria Clara era zombado pelos adversários do pai. Houve até um entrevero entre Rodolfo Borborema e outro rapaz da cidade, filho de um fazendeiro adversário de Zeca Borborema. Teve tiros de lado a lado. Os dois rapazes saíram feridos, um prometendo dar fim ao outro. As famílias fizeram-se nas armas. Só não aconteceu uma tragédia porque o major Bezerra, novo delegado de polícia, tomou as providências e meteu uns quinze na cadeia, até que os ânimos serenaram. Mas, garantia não havia de que tudo estava terminado. Não ali no sertão.
O casamento de Maria Clara com o engenheiro Fortunato foi realizado. A família do moço tinha alguma influência na sociedade da capital. Família de comerciantes e de altos funcionários públicos. O governador do estado foi padrinho do casamento por parte do noivo.
Ao tomar conhecimento do casamento da filha, Benildes Não Perdoa enlouqueceu. Chamou Bernardinho Olho de Cobra Verde, homem de sua inteira confiança. Entregou-lhe o envelope da carta de Maria Clara. Ali estava o endereço. Olho de Cobra Verde tinha uma missão delicada. Lavar com sangue a honra ferida do coronel. E lavar do modo mais duro. Ele deveria dar cabo da filha do coronel e do engenheiro. Bernardinho, como se poderia dizer, viu Maria Clara nascer. Foi ele quem a ensinou a montar no pônei Pinrinlim. Matar a menina Maria Clara? O engenheiro fosse lá. Porém, a menina... A menina que ele carregava nos braços, que levava para a escola da professora Gilda Soares, que mais isso e mais aquilo. Não deveria fazer o serviço, mas, por outro lado, era fiel ao coronel. Um dilema. Um dilema desgraçado.
Missão era missão. Bernardinho Olho de Cobra Verde jamais negou fogo ao coronel Benildes Não Perdoa. Assim, tomou o rumo da capital. Endereço assuntado na cabeça. Não foi difícil dar conta da Praça Alvarenga. Número 46. Era um sobrado. A casa dos pais do engenheiro ladrão de moça. Era um sábado à tarde. O casal saiu de casa de braços dados. Iriam ao cinema. Na esquina da loja “Sapataria Chic”, a morte estaria à espreita do jovem casal. O jagunço Olho de Cobra Verde puxou o gatilho, à queima-roupa. Disparou no engenheiro. A mão tremeu. Disparou em Maria Clara. Alvoroço. Havia pessoas na rua. Dentre elas, um soldado da polícia militar. Este, de supetão, reagiu e matou Bernardinho Olho de Cobra Verde. Maria Clara e o esposo foram socorridos. Ele foi atingido quase à altura do coração. Ela, no ombro esquerdo, de raspão. Resistiram. Salvaram-se. Na delegacia, Maria Clara preferiu dizer que ela e o marido foram vítimas de um assalto. O caso foi encerrado. Ela não queria envolver o pai. Afinal, apesar de tudo, era o seu pai. Um pai desatinado. Ferido. Bruto.
Maria Clara, após estar plenamente restabelecida, enviou outra carta ao pai. “Meu pai, eu compreendo a sua raiva, o seu desespero. Mas, meu pai, por que tirar as nossas vidas? Por que tirar a vida de um inocente, que eu trago no meu ventre, e que é o seu neto? Se eu lhe envergonhei, meu pai, foi por amor que eu o fiz. O meu coração me entregou ao meu marido desde aquele dia, quando ele esteve em nossa casa. Eu não poderia me entregar ao rapaz que o senhor queria me dar como marido. Eu seria uma mulher infeliz. O senhor queria me ver infeliz? A sua única filha? Eu lhe perdoo, meu pai. O meu coração de filha continua a lhe respeitar. Diga a mamãe que eu a amo muito, como amo ao senhor também. Muito. Apesar de tudo, eu volto a pedir a sua bênção. Para mim, para João e para o seu neto. Maria Clara, sua filha”.
O coronel não respondeu. Passaram-se dois anos. João Fortunado tornou-se engenheiro do Ministério da Viação. A família mudou-se para o Rio de Janeiro. O jovem começou a fazer uma brilhante carreira no serviço público federal. Passaram-se outros três anos. O filho de Maria Clara, Benildes Fonseca Fortunato, completaria seis anos. A família estava em visita aos parentes paternos, na capital do estado. Maria Clara tomou uma decisão que teve o apoio do marido. Foram ao Catolé de Cima. Um risco que precisavam correr. Encontraram o coronel sentado na cadeira de balanço, na grande sala de visitas. Benildes Não Perdoa se assustou. Não teve tempo de reagir. “Meu pai, a sua bênção. Este é Benildes, o seu neto”, disse Maria Clara, apresentando o menino. O velho coronel franziu a testa. Olhou para a filha. Olhou para o neto, que tinha o seu nome. Caiu em prantos. Ajoelhou-se diante da filha. Abraçou-a pela cintura. Depois, abraçou e beijou o neto, ainda em prantos. Abraçou o genro. Vida que seguiria.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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