JOAQUIM GUEDES E A RAPARIGA :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
O dia foi alteando, o sol pinicando a pele das pessoas, muitos afazeres negligenciados e a conversa era a mesma. Conversa amuada. Na delegacia, o preso gemia. Duas ou três costelas quebradas. Filete de sangue escorrendo de um canto da boca. A camisa ensopada na frente. Aliás, rasgada de tanta pancada. Uma situação lastimável. Outro preso, um bêbado franzino, tentava consolar o ensanguentado, que estava encolhido num canto da cela.
Até aquele momento, ninguém intercedera pelo preso. Também, não adiantaria. Maurílio Quebra Osso estava por conta. A desfeita que o preso fizera à casa de “seu” Manequinha Gomes não merecia perdão. Um desaforo desmedido. Uma desonra. Quem fazia o que o preso fez, outra coisa não merecia senão umas boas pancadas, uma surra de cipó caboclo e xilindró. Na cidade não tinha advogado de morada. O juiz e o promotor só apareciam de quinze em quinze, pois a cidade não era cabeça de comarca. Logo, a autoridade plena era o delegado Quebra Osso.
Para assuntos da Polícia, o prefeito não contava. Este era da UDN, ao passo que o delegado era do partido do governador, que era o PSD. O prefeito, pois, estava de baixo. Não piava. Restava o velho cônego Afrânio Vilanova, cambaleando com o peso dos seus oitenta e alguns anos, ansiando pela nunca vinda substituição. O bispo já lhe prometera uma centena de vezes que lhe arranjaria um substituto, e nada. Porém, naqueles dias, o velho cônego encontrava-se de cama. Uma gripe com cara de herege o consumia. Algumas beatas falavam em pneumonia. “Seu” Aristides da Farmácia Brasil, contudo, afiançava que era, sim, uma gripe desalmada. Uma cepa nova, que estaria causando mortes por aí.
Ninguém tinha forças para interceder pelo preso. A prisão dera-se na tarde anterior. O delegado fora acionado por um filho de “seu” Manequinha Gomes, que, aflito, exigia uma providência contra um sujeito que destratara a sua irmã Maria de Fátima, moça de procedimento irretocável, de todo mundo conhecida e por todo mundo amada. Era a cantora número um do coro da Matriz. Voz de veludo a encantar os fiéis nas missas e, especialmente, na Sexta-feira Santa, ao entoar o canto da Verônica, abrindo a toalha que continha a estampa do rosto ensanguentado de Jesus, fazendo as pessoas chorarem de compaixão. Um canto dolorido.
O sujeito que estava preso e ensanguentado com duas ou três costelas quebradas, fora à casa de “seu” Manequinha Gomes, querendo falar com o pai da “rapariga que atende pela graça de Maria de Fátima”, como ele dissera em alto e bom som. O desgraçado chamara a flor da casa de “rapariga”. A casa dos Gomes não era um cabaré, um rendez-vous, para nela abrigar uma rapariga. E, ainda por cima, detratar Maria de Fátima, chamando-a de “rapariga” soava como se fora um sacrilégio. O pai da moça deu com o sujeito no chão. Sapecou-lhe uns tabefes. Só não lhe abriu o quengo porque uns vizinhos não deixaram. “É melhor chamar o delegado Quebra Osso”, disse alguém. O menino correu à delegacia. E, logo, estava o sujeito preso e comendo cipó caboclo no lombo. Cipó caboclo e retranca de janela. Daí as costelas quebradas.
Bem. Vamos aos finalmente. O tal sujeito era o português Joaquim Guedes, dono de abastado empório na cidade de Jaqueira Alta, dali distante coisa de quinze léguas mais ou menos. O filho do portuga, Quinzinho Guedes, conhecera Maria de Fátima, que tinha dezessete anos, e por ela se encantara. Trocaram cartas com nomes fictícios para não chamar a atenção. Encontraram-se duas vezes, furtivamente, quando ela fora à casa de uma tia em Jaqueira Alta. Outras cartas com bilaterais juras de amor. Rapaz de respeito e por demais arreado dos quatro pneus pela morena de olhos orvalhados de desejo, pedira ao seu pai que fosse ter com o pai da moça para lhe pedir permissão a fim de namorar tão sublime criatura.
E foi assim que Joaquim Guedes, o preso ensanguentado com duas ou três costelas quebradas, foi ter à casa de “seu” Manequinha Gomes, para falar com o pai da “rapariga que atende pela graça de Maria de Fátima”.
Naquelas paragens, e disso o portuga, há tantos anos no Brasil, deveria saber, rapariga era mulher da vida livre, rampeira, mulher perdida. Era como entendia o pai de Maria de Fátima. Por isso, todo o fuzuê, a prisão, a surra, o filete de sangue na boca, as duas ou três costelas quebradas.
Tudo, depois, muito bem esclarecido, sobraria para o delegado Quebra Osso, pois o português era tio de cortesia do deputado líder do governo na Assembleia e de um desembargador. Foi transferido e rebaixado para tenente, após a abertura do devido procedimento militar, feito sabe Deus como.
O namoro acabaria não vingando. Quinzinho, filho único, herdaria o cabedal do pai, que morreria uns dez anos depois do fuzuê. Mas, ele não conseguiu esquecer Maria de Fátima, que, aconselhada pelo padre João Nogueira, substituto do velho cônego, metera-se num convento, um ano depois que Joaquim Guedes acabou preso com duas ou três costelas quebradas. Virou freira.
Um dia, de chofre, Quinzinho encontrou-se com Maria de Fátima, serena e bela, no seu hábito branco. Tinham-se passado vinte anos desde que ele pedira ao seu pai que fosse ter com o pai da sua pretendida. Ele continuava solteiro. E ela continuava com os mesmos olhos orvalhados de desejo.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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