Um secretário osso duro de roer :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
A cidade andava aflita desde o mês anterior. O vice-prefeito Neneca do Grotão acabara de assumir o cargo em face do falecimento do titular, Belarmino Teixeira, vulgo Belarmino de Dantinhas Cara Larga. O pobre homem morreu de repente. Teve lá um troço, depois do almoço e se foi desta para melhor. Na verdade, morreu de nó nas tripas. A dor devia ter sido tão grande, que ele morreu se estrebuchando, mijado e cagado. Um quadro feio de se ver.
Neneca do Grotão assumiu com vontade de fazer um bocado de coisas. Vereador em três mandatos, ele chegou a vice-prefeito com a força do dinheiro do pai de Belarmino, Romualdo Dantas, o Dantinhas Cara Larga, fazendeiro e agiota, no tempo em que na cidade não tinha nenhum Banco. Ele era o “Banco” da cidade e da região. Romualdo saiu pelo mundo comprando votos. Ninguém dava nada, no início da campanha, pela eleição da chapa Belarmino-Neneca. Pois não foi que a dupla ganhou de lavada? Mais de duzentos votos de dianteira. As eleições anteriores não passaram de trinta votos de frente. Doze, vinte e sete, dezoito, vinte e seis e sete votos a mais, para os cinco últimos prefeitos, antes de Belarmino. Neneca tinha caído nas graças de Romualdo, pois era seu afilhado de batismo. Muitos quiseram ser o vice na chapa de Belarmino, mas Romualdo Cara Larga impusera ao filho e a todos do partido o nome de Neneca.
O novo prefeito enfrentou, porém, um problemão. E este se chamava João Bosco Cara Larga, irmão do finado prefeito, e de rosto rechonchudo como o pai. Ele era o secretário-geral da Prefeitura. Aliás, na “Viúva” só tinha um secretário. Cidade pequena, funcionalismo reduzido, um secretário resolvia tudo. E, a bem da verdade, era um sujeito tinhoso, do tipo que fazia tudo bem feito, mas centralizador como um condenado. O irmão prefeito, aquele que se fora, nele depositava inteira confiança. Diziam até que João Bosco era o prefeito de fato, tal o poder de mando e de desmando de que ele se arrodeava.
Neneca queria botar no lugar de João Bosco, um primo de sua mulher, Geraldinho Boca de Sapo, um ginasiano. Naquele tempo, eram raras as pessoas, ali, na Borda do Campo, que tinham tirado o curso ginasial. Ter o ginásio era como ter-se doutorado. Porém, Neneca esbarrava em um valado de macambira, em uma moita de cansanção, de nome Dantinhas Cara Larga. Como substituir o secretário-geral, filho do todo-poderoso financiador da campanha?
Na cidade, as apostas eram feitas aos montes. Povinho danado que adorava uma aposta. Apostava-se em tudo. Até em corridas de preás. Borda do Campo era, talvez, o único lugar do mundo no qual se criava preás, para disputar corridas. Uns diziam que Neneca era cabeçudo e haveria de virar a mesa. Apesar de dever atenções ao “banqueiro” da cidade, seu padrinho, ele precisava dar a sua cara à administração pública municipal. Ou faria isso, ou seria engolido pelo rolo compressor chamado João Bosco Cara Larga. Outros diziam que o jovem Cara Larga, o filho caçula dentre os dezoito que Romualdo Cara Larga ajudara a botar no mundo, não sairia da Secretaria Geral. Dos dezoito filhos de Dantinhas, apenas doze sobreviveram. A mortalidade infantil era muito grande, naquela época.
Passaram-se duas semanas. Nada de Neneca ajeitar-se como queria na Prefeitura. Um mês, e nada. E aí se deu um caso estranho. Uma funcionária municipal, Dorinha Guedes, apareceu grávida de repente. Um bucho ligeiramente crescido. Um escândalo. Moça igrejeira, beata mesmo, embuchada daquele jeito, sem ter namorado ou capa de sela, era um despautério. Chamada na chincha pelo vigário, Padre Felippo Bianucci, um italianão com voz de trovoada, Dorinha confessou que o pai do menino era João Bosco Cara Larga, o todo-poderoso secretário-geral. Ah, foi um Deus nos acuda! O padre partiu para cima de João Bosco, sujeito casado e pai de três filhos. Casado, por sinal, com uma prima-irmã de Dorinha, Cecília de ngelo do Coité.
Neneca entrou nos azeites. Nunca que ele teve um caso com Dorinha, que era como uma irmã para ele. Ela só podia estar de conluio com alguém para assegurar que estava grávida dele. Uma armação! Se alguém deflorou Dorinha, não tinha sido ele. “Sou um homem de respeito. E essa moça, tão querida lá em casa, agora virou uma vagabunda”, disse João Bosco ao padre Felippo, com voz firme, sem titubear.
Foi aí que as apostas aumentaram. Neneca não iria jamais consentir que o secretário-geral da Prefeitura fosse um desonrador de moça donzela. Não pegaria bem para a sua administração. Eram favas contadas. João Bosco seria apeado do poder.
Neneca chamou para uma conversa o pai e o filho, ou seja, Romualdo Cara Larga e João Bosco. Da conversa ninguém jamais soube uma palavra. O certo foi que, depois da conversa, João Bosco foi exonerado.
Dorinha Guedes nunca pariu. Mudou-se para a capital, forrada de dinheiro, como se dizia em Borda do Campo. Até casa comprou. Tudo não tinha passado de uma armação, para que Neneca pudesse dar um chute no traseiro de João Bosco Cara Larga, irmão do finado prefeito e filho do mangangão endinheirado da cidade.
Neneca tocou a administração, ajudado pelo ginasiano Geraldinho Boca de Sapo. Seis meses depois, o novo prefeito sofreu um estranho acidente. O jeep da Prefeitura caiu numa ribanceira, numa reta onde jamais aconteceu nenhum acidente. O motorista, Totico de Totoco de Maria da Penha, o criador de galinhas de raça, teve apenas uma escoriação no braço esquerdo. Ele disse que saltou do carro antes que o mesmo desse com a ribanceira. Para muita gente, história mal contada. Coube a Marquinhos Dantas, irmão do finado prefeito Belarmino, e presidente da Câmara Municipal, assumir o comando da Prefeitura. João Bosco estava vingado. Voltou ao cargo de secretário-geral. Naquele tempo, não se falava em nepotismo.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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