RECIBO DE GALINHAGEM :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Recuando um pouco no tempo, anterior àquela tarde, João Fuinha era um vendedor de louça de barro, que ele mesmo produzia juntamente com a mãe, Dona Corália do finado Petrônio Zambeta, e duas irmãs de menor idade. O pai falecera uns três anos antes, vítima de uma jararaca, que lhe picara à altura do calcanhar, no caminho do açude. Lugarzinho brejento, onde cobras pareciam brotar dos fundos da terra. Zeloso com a família, João tornara-se o homem da casa com a morte do pai. Tinha quatorze anos quando o pai se fora.
João Fuinha tinha pela mãe verdadeira veneração. Mulher franzina de quem ele herdara o porte chocho, mas de uma fibra de fazer inveja a qualquer mulherão. E em relação às duas irmãs, Cordélia e Carolina, gêmeas de treze anos, o rapaz velava como um valente cão de guarda.
Em Matão das Almas, cidade antiga, mas que adormecera no tempo, deixando que antigos povoados, como Mamoeiro e Candeias, lhe tomassem a dianteira em crescimento, vivia um tal de Tertino de João Cadú, sujeito de bofes ruins como a peste. Antigo capanga do coronel Benildes dos Pastos Novos, arruaceiro, acostumado a dar surras em pobres coitados, a desmanchar namoros e casamentos, para tomar mulheres alheias, contumaz deflorador de donzelas. “Um dia, ele há de achar um graveto que lhe fure os dois olhos”, disse Esmeralda de Toninho de Pedro Tinoco, cuja sobrinha perdera para ele, à força, os três vinténs.
Cordélia e Carolina voltavam da escola de Dona Maninha por volta do meio-dia e pouco, no comecinho do inverno, que prometia ser bom, para compensar os três últimos anos de seca verde, quando, no Beco de Tatá, que ligava as Ruas do Melão e da Pomba, eis que o famigerado Tertino de João Cadú apareceu atrás delas, riscando o chão com os cascos do cavalo alazão, que lhe servia de montaria, chovesse ou fizesse sol. E dirigiu-lhes a palavra suja nestes termos: “Oceis é tudo fulô no ponto pra conxambrar”. Amedrontadas, as meninas saíram em disparada. O valentão ficou a rir como uma hiena no cio. Risada debochada de capeta disfarçado de homem.
As meninas disseram à mãe o que lhes tinha sucedido no Beco de Tatá. Dona Corália excomungou o coisa ruim. Preveniu as filhas que não voltassem mais da escola por aquele beco. Atravessassem a Ruas da Pimenta e do Cotovelo de Maria, caminho mais longo, mas muito mais seguro, cheio de gente o tempo todo. As irmãs também disseram a João Fuinha o que ocorreu. O irmão ouviu calado. Apenas acendeu um cigarro de palha com fumo bom de fogo. Fumo do velho Otacílio, que nunca negava fogo. Tirou umas baforadas. Olhou fixamente para as irmãs. Cuspiu longe. “Nada haverá de ser”, disse de si para si mesmo.
Não se passaram dez dias, e o arruaceiro passou a cavalo na porta de Dona Corália, que estava secando panelas de barro no terreiro, aproveitando uma manhã de sol, naquele começo de inverno. “Ô véia, tu num quer um macho só pra suas duas fia, não?”, indagou o debochado, ao que a mãe das gêmeas respondeu, colocando as mãos nos quartos: “Tenha vergonha, seu descarado!”. Nisso, o maldito botou-se para o terreiro e pisoteou muitas panelas, chegando a derrubar a pobre mulher com uma pesada. Dona Corália estatelou-se no chão, quebrando a munheca direita. O bandido deixou um recado: “Diga a seu fio, que parece um caniço de pescar, que se quiser conversa comigo, pra tratar do meu chamego com as duas fulô, que me procure no bar de Aloizio Boca de Caçapa”.
João Fuinha chegou em casa no começo da tarde. O sol da manhã já se fora. Encontrou a mãe na cadeira de balanço com o braço na tipoia. As irmãs caíram em prantos ao ver o irmão. Duas mulheres, Lourdes de Manequinha e Odete de Floriano Costela Seca, faziam companhia às vizinhas. Uma delas narrou o acontecido, tin-tin-tin por tin-tin-tin, inclusive o recado deixado pelo celerado. João Fuinha não disse nada, além de perguntar se a mãe estava bem. Sim, estava. Dantinhas da Farmácia lhe dera uma injeção e fizera uma mistura de breu derretido com clara de ovos, para encanar a munheca quebrada. Sim, Dona Corália estava bem, embora o coração sangrasse. Temia pelas filhas. Que Deus não permitisse que elas caíssem no bico de urubu de Tertino.
O tinhoso parecia ter feito morada no corpo de Tertino de João Cadú. Só podia ser, pensou João Fuinha. As irmãs ameaçadas. Duas flores desabrochando. Que jamais chegariam para o bico do carniceiro. Não enquanto ele, João, fosse vivo. A mãe naquele estado, arrebentada por uma pesada do vagabundo. As panelas quebradas. Dali vinha o sustento da família. Por uma situação daquelas, um homem perdia a cabeça, fazia uma desgraça e botava-se no mundo.
João Fuinha sentou-se no batente da porta da cozinha. Acendeu um cigarro de palha. Fumo bom, queimando sem parar. Tão diferente do fumo de Antenor Biriba, que se apagava, tantas vezes o cigarro fosse aceso. Fumo ruim, uma lástima. Ruim como aquele cabra safado do Tertino. A mãe naquele estado, as irmãs amedrontadas. E as panelas. Um desaforo, que um homem não podia engolir. Mas, como enfrentar o valentão, o antigo capanga do coronel Benildes? Ele, João, era um tico de gente. Nunca usara uma arma, nunca brigara com ninguém, não tinha os bofes quentes como uns seus parentes da parte do pai, lá do Coração do Nêgo, povoado da beira do rio das Antas.
Chamando uma das vizinhas, João pediu que cuidasse da mãe e das irmãs, se algo lhe acontecesse, logo mais. Porém, por ora, não dissesse nada a ninguém, nem à mãe, nem às irmãs. A ninguém mesmo. Ele confiava em Dona Lourdes, que era sua madrinha de fogueira de São João. Tomou da faquinha de ponta e de picar fumo. Era uma lâmina pequena, fina, mas muito afiada. Uma coisa daquela faria um estrago no bucho seboso de um cachorro sarnento do rabo fino.
João Fuinha saiu de casa. Passos miúdos, mas firmes. Sabia que não era páreo para Tertino, um bandoleiro da pior espécie. Porém, não poderia passar recibo de galinhagem. Não haveria de se acovardar diante do valentão. Parou um instante. Enrolou um cigarro na palha de milho cortadinha. Fumo do bom. Tirou a primeira baforada. Sentiu um alívio. Se fosse vivo, o seu pai não faria diferente. A honra de suas irmãs não haveria de ficar na lama. Vingada, a sua mãe haveria de ser. Nunca mais alguém haveria de quebrar panelas no seu terreiro. Medo? Não, ele não tinha. Nem passaria um recibo de galinhagem, de covardia. Um homem de sangue no olho e tutano nos ossos. Era assim que ele se sentia. Era franzino, mas era um homem. Desde menino, ele ouvia dizer que graveto era que furava olho. Um chuvisco começou a cair. E foi aumentando. A chuva parecia lavar as dores do mundo. Resoluto, ele dirigiu-se ao bar de Aluízio.
No dia seguinte, as pessoas ouviram os dobres do sino de finados, na Igreja Matriz. A cidade estava em paz.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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