O CHORINHO DE MARIA GORDO :: José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)
Há tempos que eu não me bandeio para aquela região. Tempo. Falta de tempo. Nunca mais eu fui prestigiar a novena de Dona Josefa de Aparício de João do Brejo, nem o acompanhamento de “seu” Belmiro Dantas, devoto de Santa Luzia. Não tenho ido ao costumeiro leilão na porta da bodega de Terezinha do finado Américo Pinto, leilão de Caçula de Mané Oião, que acontece a todo primeiro sábado de dezembro. Uma festa, o leilão, que acaba no mais arretado forró, daquele que o sujeito gruda na cabrocha como cola Superbond e só tem vontade de desgrudar de manhã, quando o sol começa a espalhar brasas.
A vida agitada em que vivo não me dá o gosto de saborear a prosa dos amigos do Mandacaru. Jaconias caçador, Totonho de Ferreirinha, o maior mentiroso do sistema solar, Paco de Zé Papaco, antigo criador de papagaios falantes, Felício de comadre Berenice, vaqueiro e aboiador sem igual. Tem outros, mas esses são os amigos mais chegados. Gente da minha mais conceituada intimidade. Cabras de tutano nos ossos. Amigos que os guardo no imo do coração. Porém, cadê tempo para visitá-los? Para dormitar numa tarde fresca, na rede do alpendre da casa de comadre Berenice, bebendo saborosos goles de água de moringa? Para comer uma farofa d’água acebolada com carne de sol e uma tigela de café coado, no desjejum?
Um dia, Deus haverá de me dar todo o tempo do mundo para largar a cidade e embrenha-me nos cafundós do Mandacaru. Esfriar os pés nas águas murmurantes do riacho Mão da Onça, pecar uns camarões de água doce, que ali ainda se acha, nas tocas dos remansos. E para celebrar missas, terei a capelinha de São Francisco de Assis, o santinho de minha maior predileção. Chiquinho de Assis, exemplo de vida santificada. Irmão do sol, irmão da lua, irmão da água, do vento, do lobo, do cordeiro, irmão de tudo, na harmonia cósmica. Meu Deus, eu preciso de tempo para retomar as minhas raízes. Para embebedar-me da poesia da roça, da música dos matagais que ainda resistem, embora cada vez menores.
Desculpem-se os leitores e as leitoras, por tanta enrolação. É que tem horas que o coração dá uns pinotes e o pensamento me leva para o rincão da minha infância, e aí não tem jeito: eu vagueio como pássaro sem ninho ao aproximar-se o inverno. Tateio nos escombros do passado, que não foge de mim. Desculpem-me.
Preciso falar sobre Maria Gorda. Maria Cecília Matoso. Ou Maria de “seu” Zeferino da Lagoa Seca. A família Matoso arribara do sertão de Pernambuco, na seca de 1971. O pai, a mãe e onze filhos, os que vingaram de dezessete. Maria é a caçula. Não é nada gorda. Ou não era. Apenas mais cheinha do que as irmãs Tatá, Cida, Belinha e Loura. Os demais seis, são homens. Ao todo, pois, onze filhos do casal Matoso.
Maria Gorda herdou do avô materno uma rabeca, espécie de violino sertanejo, e tomou gosto pelo chorinho. Desde menina, ela se exercitava na execução da rabeca. E o chorinho era o seu estilo preferencial. Como e porque uma menina do sertão mais ressequido pôde gostar de tal gênero musical, não tem explicação. Diz o velho Matoso que ela ouvia na Rádio Agreste, lá em Pernambuco, um programa de fim de tarde que só tocava chorinhos. Vai-se saber! A própria Maria Gorda deu-me outra versão. Mas, isso não importa.
O certo mesmo é que Maria Gorda tocava que era uma coisa braba, para dizer que ela era boa de encardir. O chorinho de Maria Gorda arrastava muita gente aos sábados à tarde. Ela tocava sozinha, sem acompanhamento, na sede da Associação Beneficente São Francisco, um pequeno salão com paredes de taipa, rebocadas e caiadas. Piso de tijolinho de olaria. A cada dia, Maria Gorda apresentava-se com maior desenvoltura. Eu mesmo, quando ia ao Mandacaru, não perdia o chorinho de Maria Gorda.
Mimosa flor do sertão, bochechas avermelhadas como duas maçãs, cabelos castanhos e olhos de gata siamesa, verdes claros. Um filho de Mamede de Calixto Guedes veio de São Paulo em visita à família. Moço distinto, engenheiro eletrônico, que trabalhava numa emissora de televisão, cujo nome eu prefiro não declinar, porque é uma emissora que se vende atoa. Pois bem. Eduardo Guedes, esse o nome do rapaz, e Maria Gorda enamoraram-se. Seis meses depois, estavam casados. Maria Gorda deixou o Mandacaru para encarar a cidade grande. E lá se vão doze anos.
Antes de ontem, isso mesmo, antes de ontem, quinta-feira, dia 13 de dezembro de 2018, aliás, dia de Santa Luzia, voltando da UFS após as aulas ministradas, liguei o rádio do carro e sintonizei uma Rádio da capital paulista em rede com uma emissora local. Era um programa de entrevistas. E quem era a entrevistada? Maria Cecília Matoso Guedes. A nossa Maria Gorda. Eu juro que não sabia que Maria Gorda estava lançando o seu quinto CD. Vibrei. A menina da rabeca pernambucana, a garota de bochechas avermelhadas lá do Mandacaru virou artista. Ah, ela executou uns chorinhos, ao longo da entrevista, que foram demais: Urubu Malandro, Odeon, Flor Amorosa, Tico-Tico no Fubá, Brejeiro, Saxofone Por Que Choras. Estacionei o carro na garagem do prédio onde moro e fiquei curtindo o chorinho de Maria Gorda. Quantas recordações!
Que delícia foi relembrar o chorinho de Maria Gorda aos sábados, no salão de tijolos de olaria, na Associação Beneficente São Francisco. Povoado Mandacaru da Serra Comprida.
Se alguém, um dia, for ao Mandacaru, atravessando o riacho da Mão da Onça, dê uma espiada no salão onde Maria Gorda tocava a rabeca herdada do avô. E pense que a menina, agora uma senhora e artista, está tocando como gente graúda. E fazendo sucesso. Que Deus a abençoe!
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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