OS BRINCOS DA DEFUNTA :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Click Sergipe)
Que padre inventivo era o padre Toinho! Com vinte e tantos anos de sacerdócio, ele estava na sua quarta Paróquia. Por onde passou, deixou um rastro benigno de realizações, de atendimento e de estreita camaradagem até com pessoas de outros credos. Um homem de Deus, na melhor compreensão do termo. A Paróquia Nossa Senhora das Graças tinha um território imenso, cobrindo, além da cidade, quase trinta povoados. Um mundão largado com gente deveras precisada da Palavra. Não tinha tempo ruim para o padre Toinho. Chovesse ou fizesse sol, lá estava ele atendendo a todos com paciência. “Um padre é ordenado para servir”, costumava dizer.
Dona Cecília Amarante, viúva do tabelião Jerônimo Rivas Amarante, era a presidente da Ação Social da Paróquia e encarregada de mobilizar um grupo de senhoras para dar início ao processo de criação do “Bazar das Graças”. Na segunda-feira depois da procissão da festa da Padroeira, Dona Cecília procurou o padre Toinho na casa paroquial. Era por volta das quatro da tarde. A caridosa senhora foi encontrar o padre cuidando de um magote de sapos, no quintal àquela hora sombreado. Eram muitos sapos. O padre os criava para dar conta dos insetos. O padre a recebeu animado, como sempre. A diligente senhora levou uma boa notícia. A família de Dona Zéfira Cardoso de Barros Mesquita, beata solteirona e bem aquinhoada de bens, herança dos pais, que foram donos de quase metade da cidade, resolveu doar roupas e vários outros pertences de uso pessoal, vez que a ricaça tinha batido as botas há dois meses.
O tanto de pertences em geral da finada Dona Zéfira já era suficiente para dar início ao “Bazar das Graças”. Eram caixas e caixas. Roupas, sapatos, bolsas, joias, bijuterias e o diabo a quatro. Tudo da melhor serventia.
Duas semanas depois, o Bazar estava com as portas abertas. Abriu no domingo, depois da missa das sete da manhã. A sala ficou pequena para tanta gente à procura de bons produtos. Não durou duas horas, e a maioria dos pertences da finada Dona Zéfira tinha sido comprada.
Dona Izaldina de Chico Fanhoso comprou um par de brincos. Assim que ela botou os olhos na joia, achou que era coisa fina. De ouro maciço. Discretamente, ela levou os brincos à boca, para conferir a dureza. Não havia dúvida. Era ouro do bom. Os brincos haveriam de lhe cair muito bem. Discretos, bem talhados, uma lindeza. Melhor aquisição não poderia ter feito. A felizarda compradora haveria de aposentar os brincos de bijuteria que ganhara de uma comadre.
O que Dona Izaldina não sabia era que os brincos adquiridos pertenceram à avó materna da finada Dona Zéfira, a também finada Dona Amélia, neta do Barão da Patioba, um sujeito que, no século XIX era metido a fazer químicas num arremedo de laboratório que explodiu umas quatro vezes, sem maiores danos. Da avó, os brincos passaram para a mãe da finada Dona Zéfira, Dona Caçulinha, e desta para a última defunta da família Barros Mesquita. Ou seja, era uma joia de família, que na família deveria ter sido preservada.
Diziam as boas línguas, para não dizer outra coisa, que a finada Dona Amélia era conhecida, em vida, como a rapa da peste. Malvada, mandona, que aplicava castigos infernais nos serviçais de sua casa, aliás, um velho sobrado, que se dizia na cidade que era mal-assombrado. Invencionices do povo. A velha era odiada por todos. O contrário dela era o irmao, o finado Joaquim Francisco de Barros Mesquita. Homem de coração extremamente bondoso, foi o primeiro empresário a pagar a gratificação natalina no estado, que, depois, viraria o 13º salário, além de ter dado assistência a centenas de pessoas carentes, todos os meses. A finada Dona Zéfira desdenhava da filantropia do marido.
Numa noite de trovoada repentina em que Dona Izaldina voltava de uma festa de aniversário, chegando em casa ao roncar dos primeiros trovões, ela como que viu, entre os clarões dos relâmpagos, que não eram poucos, a silhueta de uma mulher de cara enfezada, sentada na sua cadeira de balanço, que ficava na sala de estar. Um arrepio assustador percorreu o seu corpo por inteiro. Ela sentiu uma presença malfazeja na sala. Persignou-se. Uma mão esquálida e gélida parecia tentar tocar-lhe o rosto. Um bafo esquisito e de cheiro ruim, se fez sentir. Com voz trêmula, ela gritou: “Cruz-credo!”.
A mão esquálida e gélida pousou sobre a sua orelha direita, como se lhe fosse arrancar o brinco de ouro. Ela levou a mão à orelha tocada. O brinco desprendeu-se e caiu no chão com um barulho tão forte como um trovão. A silhueta na cadeira de balanço pareceu agigantar-se de forma demoníaca. Era um monstro. Dona Izaldina deu garra do terço benzido pelo padre Toinho e, corajosamente, marchou para a silhueta maldita. Começou a rezar com voz esganiçada. A sala tremeu. A casa tremeu. Os trovões e os relâmpagos aumentaram. O outro brinco desprendeu-se também e fez um barulho ainda maior que o primeiro. A oração de Dona Izaldina continuou. Duas mãos esquálidas e gélidas pareciam lhe asfixiar. Logo, a oração ficou entalada na garganta.
Na agonia, Dona Izaldina pôde lembrar do que lhe dizia sua mãe de saudosa memória: um artefato de metal punha em fuga uma assombração. Ela sacou do cabelo um grampo pontiagudo de metal, “enfiando-o” na cabeça da silhueta maldita. Um urro medonho fez-se ouvir. Dona Izaldina caiu no chão diante da força do urro. Desmaiou. Ao dar cor de si, ela estava com os brincos nas orelhas. Não havia nada de anormal. Subitamente, a trovoada cessou. Mas, por precaução, ela nunca mais usou os brincos da defunta.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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