Aracaju (SE), 23 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 11/01/2019 às 18:35
Pub.: 14 de janeiro de 2019

UM SANTO DE PAU OCO :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Naquele ano, ano de mais uma seca horrenda, e que era 1932, o povo do sertão do Poço do Boi a Gruta da Onça, das cabeceiras do Riacho do Alecrim ao encontro deste com as águas sempre barrentas do córrego do Morcego, enfrentou fome e sede. Mais uma vez. Desde os tempos de Dom Pedro II que vinha sendo daquele jeito. Promessas de acabar com a seca vinham desde que o Coronel Afonso de Brotas e Alencastro se tornou o Barão do Alecrim. Como? Ninguém jamais soube. Deduzia-se que o título de nobreza a ele concedido por favor de sua Majestade foi em razão de o Coronel Afonso ter mandado fazer uma estrada que ligava Borda do Alecrim, cidadezinha enxofrada, de pouca valia, ao Matão de Dentro, esta, sim, uma cidade de peso e nome no sertão. A estrada estendia-se por umas três léguas e meia. Deduzia-se também que o genro do Coronel, deputado à Assembleia da Corte com prestígio junto aos ministros de sua Majestade, teria conseguido o título de nobreza para o sogro, pai de filha única a deixar terras, engenhos, gado e comércio de algodão para engrossar o já grosso patrimônio do genro deputado com carreira política garantida, quem sabe para ser ministro do Império, algum dia. Título de nobreza mais esquisito só mesmo o do Barão da Patioba. Para este é que nunca teve explicação. 

A seca de 32 foi mais braba do que a de 1911, a pior desde a de 1872. Era o que se dizia. Os mais velhos, os sertanejos de raiz enterrada na terra como árvore graúda, baraúna e jequitibá, por exemplo, mas, ainda, rijos como pau-ferro, lembravam muito bem daquelas secas celeradas. Porém, ninguém dizia o contrário em relação àquela de 32. A besta fera parecia ter-se soltado nos desvãos do tempo e ali estava ela a atiçar o sol e a esconder as nuvens carregadas de chuva. O sertão pegava fogo, como nunca visto antes. Até urubu, aproveitador de tudo que é tipo de carniça, precisou mudar de ares. Uma calamidade se abateu sobre o sertão. Aquela seca tinha cara de herege, como bem o disse Sá Donana de Teodoro Pena de Brotas, aparentado com o velho Barão do Alecrim, que há muito se mudou para a cidade de pés juntos. 

Levas e levas de sertanejos desciam todos os dias para a região do Brejo em busca de, no mínimo, uma cuia de farinha para saciar a fome e uma cabaça de água para matar a sede. As estradas e as veredas enchiam-se de gente magra, que mal caminhava, bamboleando como espantalhos sacudidos pelo vento. As cidades do Brejo não podiam conter tantos retirantes. E estes continuavam a bambolear no rumo da capital. O governo do estado não sabia o que fazer. A oposição lascava o interventor federal, através dos jornais. Enquanto isso, o povo continuava sofrendo com o descaso das autoridades. 

Em Caçambinhas, povoado com pretensões de virar cidade, apareceu no início de outubro daquele ano, 32, um sujeito de Bíblia na mão, dizendo-se mensageiro de Deus. Era um tipo magricela, alto, dentuço, vestido num terno preto surrado, sem gravata, cabelos desgrenhados. Voz de trombeta, anunciava o fim do mundo. O mundo, dizia o tipo, seria destruído pelo fogo. O sol aproximar-se-ia da Terra e soltaria labaredas imensas que destruiriam tudo em poucas horas. Mas, segundo a sua pregação, se o povo tivesse fé, se deixasse de lado as maledicências, se dobrasse os joelhos diante de Deus, o mundo poderia ser salvo. E ele, o missionário João Miguel, esse era o seu nome, estava ali enviado por Deus, que escolheu aquele lugar perdido no sertão afogueado para dali mostrar o seu poder e a sua misericórdia para salvar a humanidade. 

Às pregações do missionário acorriam magotes de gente. Os desvalidos tentavam agarrar-se ao que lhes vinha à frente. E ali estava o salvador do mundo, o emissário do Senhor, com orações fortes, para desfazer o desmantelo que estava para ocorrer a qualquer momento. Mais que depressa, o missionário João Miguel tornou-se santo. O povo assim o quis. Milagres começaram a ser relatados. Visões do céu se abrindo, e lá nas alturas via-se o missionário ao lado de Jesus, que estava ao lado direito do Pai. Uma velhinha quase morta de fome viu duas rolinhas caldo-de-feijão cair-lhes no colo. Ela as depenou e as assou num espeto improvisado e matou a fome que lhe devorava. As rolinhas caíram após uma oração do missionário. Eram muitos os relatos de milagres creditados ao missionário magricela com voz de trombeta. Se a seca tangia levas de gente do sertão para a região do Brejo, levas ainda maiores começaram a chegar a Caçambinhas. 

A fama de santo do missionário João Miguel já se tinha espalhado por todo o estado. Até um deputado com interesse na emancipação de Caçambinhas passou a dar guarida ao santo do sertão. E levou mantimentos, farinha de mandioca e carne seca do Rio Grande, para distribuir com o povo, aglomerado em torno do santo missionário. Era o deputado Leonardo Monteiro, que tinha ali nas redondezas um bom curral eleitoral e esperava emplacar um seu irmão como futuro prefeito da nova cidade. 

O missionário convocou o povo para orar no dia 30 de outubro. Era o dia em que Deus ouviria as súplicas dos fiéis, contendo o fim do mundo. O sol haveria de parar no centro da abobada celeste, como ocorreu, em Gabaon, no tempo de Josué, que lutava com os seus valentes contra cinco reis: o rei de Jerusalém, o rei de Hebron, o rei de Jarmut, o rei de Laquis e o rei de Eglon. Assim como Josué, o missionário invocaria o santo nome de Deus, pedindo-lhe que fizesse o sol parar. A partir dali o mundo estaria salvo. As chuvas cairiam abundantemente sobre todo o sertão e nunca mais haveria seca.

No dia aprazado pelo missionário, Caçambinhas mais parecia um formigueiro. Uma romaria imensa, como as águas de um rio caudaloso, tomou conta do povoado e de seus arredores. As estradas e as veredas entulhavam-se de peregrinos. O missionário de cabelos desgrenhados agitava as pessoas com sua voz de alto-falante. A glória de Deus seria manifestada diante do povo. Ao meio-dia, o sol estacionaria sobre o povoado. O mundo estaria salvo. Por volta das onze e meia, as pessoas entraram em frenesi. Aproximava-se o momento em que Deus mostraria o seu poder e a sua misericórdia. O sertão tinha o seu santo.

Meio-dia. Delirando, muita gente viu o sol se deter no céu. “Glórias a Deus” e “Aleluias” irromperam no povoado. Gritos, choros e gemidos. Devotos caíram de joelhos diante do missionário, cujo suor escorria pelo rosto como água de bica. Afinal, a temperatura devia estar na casa dos trinta e tantos graus. Todos suavam em bicas. O tempo passou. Porém, o sol também passou. Não tinha se detido nem por um segundo sequer. A certo momento, alguém gritou: “O sol não parou, não”! Outras pessoas repetiram o grito. O frenesi, este, sim, parou. Zezinho de Zé Geraldo, adversário do deputado Leonardo Monteiro e que, como tal, era contra a emancipação de Caçambinhas, descrente, desde o primeiro instante, das orações do missionário, alardeou: “Esse missionário é um santo de pau oco”.

E foi assim que o missionário João Miguel sumiu de Caçambinhas. Naquele mesmo dia, muita gente desorientada e desiludida retirou-se do povoado. O sol também acabou se retirando para dar lugar a mais uma noite. A seca continuou até junho de 33, quando os primeiros chuviscos começaram a refrescar a terra.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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