DEPOIS DA ESCOVA E DA BARATA (*) :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Saiu de casa. Aquele pequeno amasso no carro era mais um problema a lhe perturbar. Seria uma perturbação tola noutro momento. Porém, naquele instante em que a sua cabeça fervilhava, era mais um problema a lhe esquentar o quengo.
A empresa precisava dele, como sempre precisou. O gerente, Antônio Carlos, era um empregado comprometido com o trabalho. Operoso e líder da pequena equipe da loja, formada por mais oito empregados. Com o subordinado, ele podia contar nos momentos de maiores apertos, como era o caso daqueles dias e dos mais que poderiam vir.
Ele precisava colocar a cabeça no lugar. Não seria fácil. Todavia, o mundo não estava para acabar. Não considerava ter jogado a toalha. Não estava beijando a lona. Um namoro tão bem constituído não poderia acabar assim, por causa de uma simples selfie. A namorada, sim, a namorada, pois ele ainda achava que não a teria como ex-namorada, precisaria ouvi-lo, ter paciência para as explicações que as tinha para dar. Não haveria de ser uma prima tresloucada, e prima em segundo grau, que, por meio de uma selfie, destruiria uma relação amorosa de quase três anos. Impedir um casamento que seria celebrado no ano seguinte. Era o que ele tinha proposto. Foi o que ela consentiu. Agora, tudo desfeito? Não! Ele não haveria de permitir que a felicidade lhe escapasse, como água escorrendo por entre os dedos, debaixo de uma torneira, numa bica ou na praia.
A muito custo, deu-se conta de que a clínica onde a mãe haveria de realizar os rotineiros exames, era na próxima esquina. Um pequeno engarrafamento. Um louco buzinava atrás dele, como se o trânsito pudesse fluir por causa de uma buzinada. A mãe, ao seu lado, não sabia do que se passava com o filho. Era melhor assim. Ela estava com indícios de começo do mal de Alzheimer. Doía vê-la repetir as mesmas coisas poucos minutos depois de as ter dito. De esquecer algo que fizera meia hora antes. Ele era o filho caçula, temporão. Nasceu quatorze anos depois do último irmão. Era a ponta de rama. A doença veio muito precocemente. A mãe ainda não tinha setenta anos e estava esquecendo as coisas. Já não bastavam os cuidados que precisava dispensar à mãe. Ainda tinha que lidar com o namoro desfeito. Deveras, desfeito? O noivado estava certo para ocorrer no dia dos namorados. O brasileiro, em junho, não o norte-americano, o Valentine’s Day, que estava começando a fazer moda no Brasil, como o Halloween, que se empesteara pelo país afora. Modismos. Lixo cultural dos ianques.
Enfim, a clínica. A irmã Lucila já estava à espera deles. Ela ficaria com a mãe, para que ele pudesse dedicar-se aos negócios. Beijou a irmã. Beijou a mãe.
Haveria de ligar para Raquel. Ela não poderia deixar de ouvi-lo. Sabia que não seria fácil convencer a namorada, ou ex-namorada, de que aquela selfie não tinha nada demais, a não ser por ele estar descamisado e a prima, Cíntia, em roupas íntimas. Não era nada. Não aconteceu nada entre eles. Um momento de descuido diante do calor exagerado de fevereiro. O tempo estava destrambelhado. Afinal, tinha gente na casa da prima, naquela tarde, dois dias antes. Ele tinha provas. Fora ali para almoçar. Nada mais. Raquel não podia ser tão intransigente. Ele sabia que tinha cometido um erro. Deixar a prima sentar em sua perna esquerda, naqueles trajes, foi um lapso. Nada mais. Mas, compreendia o desapontamento instantâneo da namorada. Se fosse o inverso, como ele reagiria? Não queira nem pensar.
Amava Raquel. Ela era a sua companheira, a sua cúmplice. Aquela cabeça de mulher adulta, ponderada. Resolutiva, conselheira. Aquele sorriso. A ternura. O modo gentil com que ela segurava a sua mão, apoiava-se em seu braço, confiante. Os olhos cor de mel, os cabelos sedosos, tão bem cuidados. A pele mais macia do que um pêssego. Os momentos de intimidade. Como renunciar a tudo aquilo? Não. Ele não poderia perdê-la. Ligaria mais uma vez para ela. No dia anterior, depois que ela anunciou o rompimento, ele ligou várias vezes. Ela não atendeu. Segundo lhe disse a mãe dela, Raquel viajou. A mãe não disse para onde. Ele compreendia o desapontamento dela. Compreendia. Porém, ela teria que lhe ouvir. Até lhe desculpar, lhe perdoar. Sim, pediria perdão. Não lhe custaria nada. Ela estava certa. Se fosse o inverso, ele não saberia como teria reagido. Provavelmente, sentiria o coração sangrar. Então, compreendia o que ela estava sentindo. Não era burro. Tinha consciência.
Chegou à loja. As mercadorias recebidas na tarde anterior estavam sendo conferidas pelo gerente e por dois empregados. Os negócios iam tão bem, que já pensava em expandir. Abriria outra loja. Estava nos acertos. Por outro lado, Raquel também estava bem estabelecida como esteticista. Ambos progrediam. Uma selfie não haveria de pôr termo à relação entre eles. Lutaria por ela até o fim. Não a poderia perder. Ela mudara o seu modo de vida, fizera-o endireitar-se.
No escritório, tomou do celular e ligou para Raquel. O telefone tocou. O coração acelerou um pouco. Continuou tocando. Acelerou ainda mais. Tocou. Ele coçou a cabeça. Tocou. Repentinamente, ele se lembrou de uma frase dita por uma jovem mulher ao jovem esposo, num filme ao qual ele assistiu com Raquel, na TV por assinatura: “Amar é não ter jamais que pedir perdão”. O telefone continuou tocando.
(*) Continuação do texto “A escova e a barata”, publicado anteriormente.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
CONFIRA: A ESCOVA E A BARATA :: Por José Lima Santana
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