Jaca não bota ponta :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Ele gostava de jaca mole, do tipo ouro, bago pequeno, dourado, favo de mel a se desmanchar e escorrer pelos beiços, na degustação. Ah, bem manhazinha, uma jaca mole daquele tipo, era de comer trinta ou mais bagos! Uma delícia. Abrir uma daquelas jacas com as mãos, retirando o naibo e enfiando o garfo, ou mesmo o dedo, bago por bago, era melhor do que comer maná do céu. Embora maná ninguém jamais comeu, a não o povo do livro santo. Não dava, pois, para fazer comparação. Depois, era passar querosene ou óleo de comida nas mãos para tirar o visgo e, se fosse o caso, bebericar um dedo de alguma bebida alcóolica, para evitar uma barriga inchada e um arroto ruim.
Era domingo. Na bodega de Edinaldo uma jaca deu entrada por uma das portas pintadas de verde, tinta ainda cheirando a nova. As mãos de Juca de Lió trouxeram a jaca, que não era do tipo ouro, mas, sim, da roxinha, do quintal de Tonho Miúdo, único lugar onde se achava aquele tipo de jaca, igualmente doce, mas com o patacho e o naibo arroxeados. Bagos pequenos a esperar por bocas ávidas. As melhores jacas do mundo, sendo moles, sempre foram as dos tipos ouro e roxinha. O resto era conversa para boi dormir.
Havia quem gostasse de retirar os bagos da jaca e besuntá-los com farinha de mandioca, daquele bem sequinha, da média, nem muito fina, nem muito grossa. Valia por um café da manhã. Porém, Valdomiro de João de Belarmino só comia jaca mole, no amanhecer do dia.
A jaca que entrou por uma das portas da bodega de Edinaldo não era para vender. Era para o bodegueiro, outro contumaz e bom devorador de jaca mole. Presente do compadre. Ora, mas Valdomiro tanto insistiu que acabou comprando a jaca por um preço muito além da conta. “Jaquinha cara da moléstia. É de ouro, é Valdomiro?”. E ele: “Tá...! Tô nem aí. Eu quero é passar a bicha pra pança. Dar mel às minhas lombrigas de estimação, né não Pinto Pelado?”. Outra gargalhada desembestada. Ciço Pinto Pelado, cabeça pelada e brilhosa como um fundo de caçarola areada, também gargalhou e emendou: “Tu pode comprar até a carga toda da jaqueira de ‘seu’ Ontônho, que dirá uma jaca. Só num vá se entupir, seu fio duma capivara”. No recinto acanhado da bodega, todos riram. Manhã invernosa, chuva caindo, cada um procurando se esquentar com uma bicada de cachaça com alguma mistura, erva-doce, angico, milone e por aí afora. Valdomiro, então, anunciou uma rodada para todos por sua conta. “Ih, e dêrde de quando tu deu pra abrir a mão, fechada quinem fiofó de sapo, seu pé de mandacaru espinhento?”, perguntou Felismino de Maria de Joca Queixada. “É que tô de amor novo, seu besta! E quero comemorar”. Pois sim. Homem sovina como ele, porém, de amor novo, depois do que lhe acontecera, era bem capaz de abrir a mão para pagar umas bicadas.
Valdomiro tinha-se empurrado para a filha de Manequinha do Lajeado, Rosa Raquel. Um mimo de pessoa, embora não fosse de comparação com a boniteza de Ana Maria, ex-namorada do novel mão-aberta, que o tinha deixado para fugir com o ator dramático do “Circo Magia do Céu”, aportado na cidade, oito meses antes. Uma dor de corno da gota serena se abateu sobre Valdomiro. Perder aquela belezinha para um sujeitinho de circo...! Era como se tivesse levado chifre na testa. A molecada, por pirraça, dizia pelos cantos da cidade que ele tinha perdido a namorada para o palhaço Zambetinha, o anão-palhaço. Zoação geral. Foi não. O tal arrebatador de Ana Maria, bonitinha, mas espevitada que só ela, fazia os tão esperados “dramas” do circo, encenações melodramáticas quase todas de terceira, bem chinfrins, mas, de fazer muita mulher chorar. Ana Maria chorou, mas foi nos braços do varapau de longas costeletas e cara de mocinho de filmes de bangue-bangue espaguete, exibidos toda segunda-feira, no cinema local. Ana Maria encantou-se. Arreou-se dos quatro pneus. Paixão ou amor, era assim mesmo. Arrasava. Sem acabar o namoro com Valdomiro, ela se foi com Ricardo Maldonado, nome artístico do varapau. Semanas depois, chegou a notícia na cidade, que Ana Maria estava de par com o tal Maldonado, interpretando os papeis que a rumbeira do circo antes interpretava. “Óia só, virou atriz de circo, a danada!”, exclamou Tonieta de Pedro Mocó.
Naquela manhã, cada um bebeu a pinga de sua preferência. Um por um, todos cuspiram no pé do balcão, um cuspo grosso, resinoso. “Ô, Vardumiru, tu tá tão forgado de amor novo, que podia pagar outra pra nóis!”, brincou Pinto Pelado. “E aí, namorador? Tire a cascavel do bolso!”, disse Osvaldo de Robertão do Beco do Cachimbo. Outros gritaram em apoio à proposta. Valdomiro, que fazia menção de abrir a jaca, acocorado que estava ao lado da porta principal da bodega, não se fez de rogado: “Pois então, tá bom. Pode servir, ‘seu’ Edinaldo, mais uma rodada pra essa raça linguaruda”. Êh, manhã festiva de chuva miúda!
Valdomiro abriu a jaca roxinha. Em suas mãos, o patacho foi cedendo, como o caminho que Moisés abriu nas águas. “Quem quer se melar de visgo?”, perguntou. Ninguém quis, não por não gostar de jaca. Quase todos gostavam. Era para não tirar a satisfação do jovem de amor novo. Sujeito de fino trato estava ali. Amigueiro, trabalhador, dono do seu nariz. Só não jogava fora o que possuía, advindo do trabalho como ferreiro, um artista nas artes com os metais. Daí a fama de pão-duro. O mel da roxinha começou a escorrer pelo canto da boca de Valdomiro. “Ôceis num sabe o que tão perdendo, cambada de gabiru!”.
Lá fora, debaixo da chuva, mas protegido por uma capa, alguém gritou: “Vardomiro! Vardomiro, vem cá!”. Era Argemiro, irmão mais novo de Valdomiro, seu ajudante na oficina de forja e fole. “Oxente, minino! Vem aqui!”. Argemiro aproximou-se, meio ronceiro. “Quer jaca? Desembuche, vai!”. O irmão olhou em volta, receoso. “Posso falar aqui, não. É coisa ruim”. Valdomiro levantou-se: “Todo mundo aqui é amigo. Vai lá. Diga logo”. A notícia não era mesmo boa. Rosa Raquel fora namorada de Antônio Mendes de Américo Mocó, antes de, cerca de uma semana, dizer “sim” a Valdomiro. O antigo namoro tinha demorado um ano e tanto. Desfeito sem motivo aparente. O irmão de Valdomiro, titubeando, disse, com voz trêmula: “Mãe mandou dizer que a mãe de Rosa Raquel avisou que ela fugiu astãnoite com o ex-namorado”. Valdomiro engoliu um seco. Ficou inerte por um instante. Depois, voltou a acocorar-se e a degustar a jaca mole. Silêncio. Espantados, os outros oito fregueses da bodega não disseram nada. Enfim, o amor no coração de alguém desabrochava num jardim certo ou incerto. Que elas, Ana Maria e Rosa Raquel, fossem felizes. E que ele, um dia, também pudesse ser.
Depois de devorar a jaca, Valdomiro disse, resignado: “É só mais uma que se vai. Tô livre. A fila anda”. Então, Geraldinho de Edinaldo, de 15 anos, não se segurou: “Fique avexado, não, Valdomiro. É melhor comer jaca do que namorar. Jaca não bota ponta em ninguém”.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE