Depoimento final de um ex-jagunço :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Se licença eu tenho, se ela vosmicês me dão, por demasia agradeço; mas, se não tenho, nem me dão, eu tomo, como muitas coisas tomei, inclusive vidas, sem querer de querência minha. Quero dizer que comecei a defuntar gente ruim por causa de um coronel e de um juiz que desprotegeram irmã minha, a caçula, Maristela. Não que eu gostasse ou gostei de matar. Não foi isso, embora, com o tempo, matar foi-se tornando uma coisa descoisada, que não me dava comichões na alma apartada de Deus, nem no coração meu de pouca iluminura. Andei e desandei por caminhos retos e curvos. Por duas ou três vezes, quase fiquei no pó do caminho, quem sabe, numa cova rasa, igual a bolso de pobre. Ou, talvez, jogado como carniça ao bico dos urubus.
De pés no chão, pés rachados como a lama seca dos riachos, tostada pelo sol matador de plantas, bichos, açudes, rios e gente, corri sertões. Me aventurei e me desventurei para fazer pai meu afrouxar o chiado do peito por causa da filha desonrada. Pai meu entrevado no catre duro de varas e esteira, com bala na espinha, que lhe entortou o corpo e a vida, anos antes. Malquerença foi. Lágrima de pai meu doeu em minh’alma. Não suportei. Filho homem único, não me restou saída. Fiz-me no mundo. Fiz-me nas armas. Matei o coronel Belarmino, afamado tomador de terras alheias, de gente fraca nos teres e haveres. Fortuna grande ele fez, grilando e matando. De morto fiz o coronel com uma peixeirada certeira no coração malfazejo. Mais fácil foi matar afilhado dele, um tal de Berimbelo, de nome batismal Roberto Pereira, segundo depois sabedor eu fui. Esse maldito Berimbelo fez mal a irmã minha, com ela coxambrando a pulso e largando a pobrezinha quase morta, roupa em fiapos, na beirada da cacimba. Uma desgraça!
Antes dessas mortes merecidas, mãe minha ouviu o juiz dizer que Berimbelo era um rapaz de grande finura e de estendida bem-querença, que mal algum era capaz de fazer a qualquer moça. Mãe minha que procurasse outro a ter lambido o favo de mel de Maristela. Mãe chorou, juiz se riu. Esse de capa preta, de borla e capelo, eu deixei por derradeiro. Nele atirei no meio da rua, no meio do povo, na procissão de São José, santo do meu nome e do meu proteger. Polícia do Estado inteiro no meu encalço. Reza do rezador Josias do Catolé, que Deus o tenha por merecido merecimento, encantou-me vezes muitas. Tiro levei só uma vez. De raspão no quengo. Sangue meu salpicou moita de malva branca, abençoada planta para curar inflamações.
Fugindo por escuras veredas e por socorro de amigas mãos, que até um desvalido como eu também tinha lá os seus anjos-da-guarda, os do céu e os da terra, dei de escapar. Sou um bruto, eu sei. Mas, porém, e todavia, Deus há de saber que descaminhos meus não foram do meu livre querer. Foi precisão. Era o ano de 47. Cheguei a São Paulo e, logo, fazendeiro de charutão no canto da boca, contratou paus-de-arara para quebrar milho. “Você, galego de barba de arame, sabe quebrar milho?”, perguntou “seu” Amadeo Morato, nome do grandola. Quebrar milho era serviço de menino. Maneiro. Porém, não era tempo de colheita. Estranhei, mas carecia do serviço. Carecia sobreviver. E carecia adjutorar família minha, que se mudou na calada da noite, pai meu entrevado, para escapar da vingança do povo do coronel e da força do Estado, por causa do juiz caído. Quebra de milho... Recusei tão logo esclarecido fui. Era como se dizia em São Paulo, nos sertões, a matança de índios, que restavam e lutavam pela terra sua. Índio é a gente brasileira da maior brasilidade. Me desentendi com o fazendeiro, “seu” Amadeo. Ele botou jagunços pra me matar, com medo de ser delatado. Dedo duro nunca fui. Dois sujeitos botaram tocaia na curva do córrego que ficava por trás da sede da fazenda. Água tinturada de sangue ruim correu córrego abaixo. Dó num tive. Nem ter podia.
Zanzei. Bati pruculi e pruculá. Paraná fui conhecer. No café trabalhei duro. Arrumando vida minha. Moça bonita d’eu se engraçou. Pai de muitos teres zangou-se. Fazer mal não quis. Anoiteci e não amanheci. Ganhei estrada. Assentei-me no Mato Grosso. Primo meu lá estava. Depois de ano e pouco, primo meu recebeu carta da mãe, tia minha, escrita por prima de pouca leitura. Notícia de desassossego. Gente do coronel Belarmino deu caça do pai meu. Mais de vinte balas contadas. Pai entrevado, pai morto. Cresceu a fera dentro d’ eu, como maldito labisone. Na verdade, botaram pra crescer fera n’eu. Botaram, sim. Nunca que eu quis matar viv’alma. Forçado fui. Subi ao Norte. Disfarçado, pranteei pai meu. Cova rasa no cemitério aberto, tomado por animais. Filhos do coronel espetei com punhal de avô meu, que mãe minha me deu e disse: “Ôce é única esperança minha!”. Não desmereci. Diziam que eu tinha partes com o zambeta. Tinha não. Se tivesse, descosturava meio-mundo.
De novo, no mundo caí. Comigo levei mãe minha. Irmãs casadas debandado já tinham. Maristela morreu tísica, antes de pai meu bater botas, por contrário gosto. A pobrezinha entregou-se ao fastio e à doença. Entreguei mãe a cuidados de tia minha, cunhada sua. Na Bahia. Lá mãe morreu. Andei pelos sertões de Goiás. Fazendeiros em pé de briga. Muitas mortes. Estive ao lado de “seu” Gonçalo do Juramento. Homem de sangue no olho e pelos espetados nos buracos das ventas. Justo homem, de valentia desassombrada. Jaguncei. A matar voltei. Só gente ruim, merecedora do além. Até que cansei. Idade chegou. Mulher e filhos, já tinha. E netos. Roça minha e gadinho meu. Vida sem sobras, mas sem apertos. Sobrosso nunca encostou n’eu. Remorso não também.
Viuvei. Mulher outra nunca quis. Idade me fez doente. Ossos ruins, brocados. Queda levei. Hospital foi morada minha por três meses. Cadeira de rodas me leva. Alquebrado, mas vivo. Oitenta e nove anos. Terá Deus piedade de mim?
Filhos meus de bom coração. Todos. Vida minha prestes a se apagar como vela na ventania. Sinto sol da tarde caindo nos braços da noite. Vida minha, escura noite... Nunca quis apagar estrelas. Vidas são estrelas. Me forçaram. Fui metido na escuridão. Homens poderosos isso fizeram. Em Deus eu creio. Em mim, não sei se Ele crê, nem se alento me dará, quando para o fogo eterno eu for. Quem sabe...
Fim de tarde. Mormaço. Nuvem repentina nos meus olhos. Nada fiz por maldade do meu coração. Não... Nada fiz...
Naquele fim de tarde, a vida de José Sebastião da Silva, vulgo Galego Barba de Arame, deslizou para a sombra da morte. No meio da noite, fogo no céu. Trovoada à vista.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE