Vingando Duquinha :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto de arquivo: Click Sergipe)
“Sol a pino. Urubus em circular revoada. Verão castigando a catinga. A cara de herege de mais uma seca vinha se aproximando. Bichos e gente com destino selado pra morte. Duquinha era meu primo. Homem sem coração o matou. Duquinha nasceu desajuizado. Era tontinho. Mas, não era um cão sem dono. Pai dele soverteu no mundo, deixando tia e Duquinha ao Deus dará. Minha mãe sempre dizia que Duquinha era um anjo que Deus enviou, para ser cuidado. Não sei se Deus manda anjos como Duquinha. Anjos não regulam dos miolos? Sei lá... O povo tem cada uma! Nem tudo que o povo diz ou inventa eu acredito.
Andejava já há seis dias. Partes da cara lambuzei com leve tintura de jenipapo, como os índios faziam, para disfarçar. Homem mau era conhecido de Durvalino Boca de Sapo. Era arranchado, segundo este, nos Pilões, algumas léguas adiante, para as bandas do Vale das Cobras, antro de vagabundos e foragidos da Justiça. Chamava-se Terto de Julião. Eu não tinha pressa. Andava devagar. Por onde passava, não dava fiança a ninguém. Nem dava ‘bom dia’ ou ‘boa tarde’. Seguia meu caminho. Pensamento voltado para o matador de Duquinha. Pobre menino. Talvez, ele fosse mesmo um anjo de passagem pela Terra, como mãe dizia. Anjos sofrem? Anjos morrem? Ia-se saber!
Nasci sem medo. Cresci sem pai e sem irmãos. Pai nunca que conheci. Mãe nunca me disse quem deu conta de me botar no mundo com ela. Nunca perguntei a dona Flora. Seria um embaraço pra ela. Todavia, cresci com a pulga atrás da orelha. Sempre achei, desde que criei tento na vida, que meu pai podia ser Antônio de Sá Rosa. Vez em quando, ele passava lá em casa e dava umas nicas a minha mãe. Por que? Ele me olhava, sorria e tomava o caminho. De certeza eu nada tinha. Só suspeitava. Cresci como onça. Sem dar trela a ninguém. Aprendi a ser forte, ao meu modo e nas minhas condições. Trabalhava de sol a sol. Tinha dias que me sentia um bagaço de cana chupado. Mas, não me entregava. Não sei onde arranjava forças. Só sei que arranjava. Doença nunca peguei, a não ser uma gripezinha, aqui ou acolá. Lambedor de jurubeba, sabugo, hortelã miúdo e mel de abelha. Pronto. A gripe ia simbora como veio. Não demorava, eu não lhe dava largueza.
Nos seis dias de andança, dormi ao relento. Fogueirinha de gravetos acesa pra espantar bichos, como cobras. Coberta de saco de aniagem, trabuco ao lado, um olho fechado e outro quase aberto, a bem dizer. Nada me atormentou até ali. Embora não seja de religião, tenho cá de meu, minhas rezas. Creio em Deus. Creio em Jesus. De que mais eu preciso? Mal não faço, ou nunca fiz por querer meu. Se fiz, foi no afogadilho da vida. Em dois dias, queria botar os pés nos Pilões. Aí, a gente ia ver!
Minha tia Doralice chorou amargamente a morte de Duquinha. Uma vizinha, Maria das Fubás, disse que ela tinha se livrado de um fardo. Tia Doralice quase a excomungou. Duquinha era um anjo ou um fardo? Dependia do viés de quem via e sentia. Mãe não carrega fardos. A morte de Duquinha causou comoção no povoado, na maioria das pessoas. Talvez, menos no coração de Maria das Fubás, uma doida de pedra. Só podia ser. O malfazejo estava de bebedeira na bodega de Firmino de Joana de Totoinha. Duquinha foi comprar uma quartinha de querosene. Garrafinha numa mão, uma nica na outra. Entrou correndo e deu com a perna do sujeito dos Pilões. Tropeçou. Esborrachou-se. Quebrou a garrafa. O malfazejo deu chutes no menino-anjo. Puxou um revólver. Ninguém teve coragem de acudir. Gente mofina.
Mundo de perdição. Homens malvados, sem justiça que atalhasse suas danações. Como um coração podia ter em si tanta crueldade? ‘No sertão os homens são brutos’, dizem. Não são todos. Não são. Brutos são os que foram criados com brutalidades dos pais? Ou nasciam embrutecidos e não eram domados, como cavalos selvagens? O que se passava num coração como o daquele malfeitor, que matou a chutes e tiros o pobre menino de tia Doralice, meu primo Duquinha? Descanso eu não teria, enquanto não olhasse pros olhos daquele infeliz, cozidos pela morte. Tenho opinião pra tudo. Não ia descansar enquanto o sangue dele não borbulhasse fora do corpo, escorrendo no chão como água de sujeira.
Fui vendo coisas tristes pelos caminhos. Meninos de buchos salientes, carregados de lombrigas, amarelos de dar dó. Nus ou seminus, pés descalços, uma tristeza. Mulheres se acabando com feixes de lenha enormes na cabeça, trotando, cai não cai. Sertão sofrido.
No mear do oitavo dia, eis ali os Pilões. Um lugarejo onde Judas perdeu as botas, se botas ele tinha. Casinhas de taipa e palha, na maioria. Uma ou outra de telhas. Um arruado em curva. O calor parecia vir de uma fornalha. O cheiro do suor do meu cavalo era forte demais, azedo. Moscas voejavam em torno da cabeça do animal. O malfeitor, matador de Duquinha, devia estar por ali. Ajeitei o revólver comprado a João de Belinha. Minha mãe, dona Flora, não gostou da compra que fiz. ‘Pra que tu quer uma coisa dessa?’. Pra quê? Ora, ora... ‘Pra alguma precisão, mãe’.
Perguntei a um velho, sentado debaixo de um pé de murici: ‘Por mal que pergunte, meu avô, vosmicê conhece Terto de Julião?’. Ele me olhou e respondeu com uma boca sem dentes: ‘Ali, naquela casa’, apontando pro casebre bem à minha frente. Desmontei. Amarrei o cabresto do cavalo no pé de murici. Não tremi. Cheguei à porta aberta, e vi o tal sujeito escornado, parecendo bêbado. Gritei, de revólver na mão, engatilhado: ‘Terto de Julião!’. Meio grogue, ele abriu os olhos. ‘Sou eu. Quem é vosmicê?’. Sem pestanejar, atirei. Uma, duas, três vezes. Não tremi. Tirei da cabeça o meu chapéu de couro surrado. Meus cabelos se soltaram. Me benzi. Ele balbuciou: ‘Você... Você é mulher... Me matou!’. Arregalou os olhos. Já não estava mais neste mundo”.
Naquela boquinha da noite, o repórter João das Olivas ouviu as últimas palavras da entrevistada, Mariana de Flora: “Aquele malfeitor, que tirou a vida do anjo Duquinha, foi o único homem que eu matei, antes de entrar pro cangaço. Estou nessa vida há um ano e meio. Aqui encontrei meu homem. Vida dura essa nossa. Sei que, um dia, vou morrer nessa vida. Bala de algum macaco há de me acertar. Pra gente, a vida e a morte são uma coisa só. Bote tudo isso no jornal, seu moço”.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE