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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 22 de agosto de 2015

Capadinho :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Sol (Imagem: reprodução/internet)

Sol (Imagem: reprodução/internet)

Mundo que gira. Vida que anda. O céu naquela tarde era de faíscas por todos os lados. Literalmente. Faíscas solares numa tarde de calor brabo. Faíscas do fogaréu que parecia consumir o mundo inteiro. Era o que pensava o velho Balbino de Sá Donana Parteira. Esta era responsável pela vinda ao mundo de dez dentre dez crianças num raio de seis léguas, circundando a Mata Verde, o Timbira, o Arvoredo, o Riacho do Meio, a Serra Miúda, a Serra Grande, o Dendezeiro, o Gameleiro, a Lagoinha e o Gravatá. Graça era quando mais de uma mulher, distante uma da outra, eram atacadas pela dor de menino. Era um Deus nos acuda. Com o tempo, Sá Donana foi preparando umas ajudantes: comadre Creusa de Maria Dió, comadre Jardelina de Totoinho Beiçudo e comadre Cecília Gorda. As duas últimas aprenderam num triz. Mas, a comadre Creusa demorou um tempão para se ajeitar na nova empreitada. Oh, cabecinha dura! Para entrar uma coisa naquela cabeça de meu Deus, era um desvalimento. Uma tourada, como dizia Sá Donana. Porém, quem foi que disse que eu quero falar de Sá Donana e dos parimentos das mulheres daqueles lugarejos perdidos na boca do sertão? Quero não! O assunto é bem outro. Embora no fundo, bem lá no fundo, talvez tenha algo de aparentado.
O mundo parecia incendiar-se naquela tarde de faíscas por todos os lados. Um fogo danado levantou-se pras bandas do Gravatá, numa distância calculada pelo velho Balbino de légua e meia. A vermelhidão tomou conta de tudo. E o calor veio se chegando, se chegando, como se já não fosse demasiado. Labaredas levantaram-se da terra ressequida como se quisessem acabar com o céu. “T’esconjuro!”. Pensou de si para si, Sá Donana, que estava no terreiro da casa, ao lado do marido e do escrivão Tinoco Bufa-Bufa, que tinha um sítio por ali. Aliás, Bufa-Bufa era um apelido que ninguém ousava proferir nas fuças de Tinoco. Quem se atreveria? O bicho era mais grosso do que tolete de feijoada. Todavia, era o maior soltador de flatulências da galáxia. Ele incendiava mais do que o fogaréu daquela tarde.
De repente, o terreiro de Sá Donana, a casa de Sá Donana, a estrada e tudo o mais ficaram tomados por bagaço queimado de capim. Na amplidão do espaço afogueado, bagaços eram tangidos pelo vento. Parecia um enxame de negras e grandes abelhas. Arapuás gigantes bamboleando no ar. Logo mais, tudo estaria preto, coberto de bagaço queimado. As capineiras de Décio de Secundino pegaram fogo. O fogo começou no pé de uma elevação. E fogo de morro acima com o vento soprando não tem cristão que apague. Duzentas tarefas de capim sempre-verde, entre maduro e seco, se foram. Pedrinho do Gameleiro, vizinho de cerca, ainda perdeu umas vinte tarefas de capim gordura. O capim que era o mimo dos seus pastos. Capim cheiroso e engordador de bois que era uma beleza.

Sinto que estou dando voltas. E o leitor volteia comigo. Entro por aqui, saio por ali e o leitor segue comigo. Quanto ao Capadinho, nada. Até agora. Contudo, hei de chegar nele. Com calma, tudo se resolve. E se escreve.

Décio. Décio de Secundido, seu pai, duas vezes prefeito. O filho não gostava de política. Gostava de terra. De capim. De boi no pasto e na balança. O mais próspero da família. Mais do que o pai. Do que os cinco irmãos. Do que os tios e os primos. Mais do que todos os membros da família Pinheiro Peixoto. Família imensa de homens trabalhadores e de mulheres bonitas. Princesas sem títulos de nobreza. Décio foi chamado às pressas pelo filho do vaqueiro Elesbão Papudo. Estava na Lagoinha, um povoadozinho mixuruca, mal e mal formado por uma dúzia de casas e casebres tristes de dar pena. Um aglomerado menos vistoso do que um urubu com sono. Nem cemitério tinha. Nem igrejinha. Nem escola. Nem nada. Um lugar onde o Cão perdeu as botas. Décio de Secundino tinha naquele lugarejo sem futuro um bom motivo para passar tardes inteiras, quando o tempo era favorável. Amancebação das boas. Amigação de primeira. Morena de cabelos lisos e negros como fios de seda tecidos numa noite escura. Olhos igualmente negros, como frutos de um pé de maria-preta. O rosto... O rosto era um pedaço do céu estrelado e enluarado de tão formoso. Corpo? Ora, pensei uns dez minutos para descrevê-lo. Não encontrei palavras à altura. Desculpe-me o leitor. Sou um escritorzinho fubeca. O corpo de Liz, como Décio chamava Lizete, sua estonteante capa de sela, não tinha como ser definido. Capa de sela era um artefato fofinho, feito de lã de ovelha, que se punha sobre a sela. Um mimo! Coisa de dar gosto. Capa de sela era também uma belezura como Liz. Fruta silvestre desmanchando-se em puro mel.
Pois Décio fora avisado do fogaréu quando estava nos braços de Liz, morrendo sem morrer direito. Afogando-se. Desmilinguindo-se. Morrendo e ressuscitando. Uma perdição! Que ele buscasse penitência no confessionário do Padre João Maria. Mais que de repente, estava ele no Jipão, comendo poeira na estrada e já avistando a vermelhidão da queimada. Muitos homens já cuidavam de fazer barreiras para impedir o avanço do fogo. Sem resultado. Fogo e vento formavam uma mistura endiabrada. Não teve jeito. Duzentas tarefas queimadas do melhor pasto que Décio tinha. Além da queimada no vizinho. Prejuízo danado. O prejuízo maior, porém, ainda estava por vir.

Décio era casado com Maria Auxiliadora, filha de Maurício Guerra, da família Tostes Guerra das Alagoas. Um mundaréu de gente rica e politiqueira. Gente de valentia a toda prova. Casamentão fizera Décio com a menina Maria Auxiliadora, que era silenciosa, mas dura como todos da família Guerra. Filha única. Herdeira única de uma fortuna sem medida. Naquela tarde do fogaréu, uma amiga lhe dissera que o seu marido tinha uma amante nas brenhas da Lagoinha. Dissera em segredo. Segredo maior do que o de confessionário. “Pelo amor de Deus, mulher, num me bote em precipício”, pediu a amiga fofoqueira. Ficasse tranquila. O casal tinha três filhos. Dois meninos e uma menina. Maria Auxiliadora não queria mais filhos. Ao contrário, Décio queria mais um ou dois. “Não comigo, meu nêgo!”. Dizia Maria Auxiliadora. No pensamento dela, o marido procurou a tal rapariga para lhe dar filhos, como ele ainda queria. “Nem comigo, nem com ela”, pensou. “Nem com nenhuma outra”, pensou novamente.
Décio chegou ao lar, doce lar, tarde da noite. Abatido. Não era para menos. O ocorrido do fogaréu já era do conhecimento de todos na cidade. Maria Auxiliadora consolou o marido. Os filhos também consolaram o pai.

Pela manhã, Maria Auxiliadora, serena, mas se roendo por dentro, como barriga de cobra com fome, sem maiores delongas disse a Décio: “Eu tenho uma proposta pra lhe fazer. Você vai fazer uma vasectomia, ou meu pai vem aqui pra lhe capar. Escolha. Isso é por causa da quenga da Lagoinha”. Disse assim. Bem assim. Secamente. Tranquilamente. Ou melhor, aparentemente tranquila. Décio assustou-se, não com a proposta em si, mas quando ela se referiu a quenga da Lagoinha. O mundo caiu. Foi pior do que o fogaréu da tarde anterior. Não teve jeito. Ele optou, obviamente, pela vasectomia, que seria feita dois meses depois. E os amigos, então, o apelidaram de Capadinho.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 22 e 23 de agosto de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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