O fuzil e o bico do urubu :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana
Os dois filhos de Antero ganharam o mundo para as bandas do “Son Palo”. A cidade grande arrastava levas de sertanejos. Os caminhões pau-de-arara iam e vinham, iam e vinham. Levas e mais levas de pobres diabos que procurariam endireitar-se na vida, lá nas terras paulistas, onde, diziam, sobravam empregos. O novo governo tinha como lema “Cinquenta Anos em Cinco”. Iria construir uma nova capital. Por lá também sobrariam empregos. Antero viu a cara sorridente do presidente numa folha de jornal na bodega de “seu” Américo, no Beco de Baixo. Ele era freguês antigo do bodegueiro. Ali, Antero e a mulher faziam as compras semanais. Nos tempos de vacas gordas, Dona Maria José comprava bolinhos de ovos que Dona Berila os fazia e que se desmanchavam na boca. Um mimo!
Em casa, além dele e da mulher, Antero tinha três filhas. Todas solteiras. A mais velha já caminhava para o caritó. Beirava os trinta anos. Já, já seria uma balzaquiana. Lembrando que esse adjetivo derivava do romance de Honoré de Balzac, “Mulher de Trinta Anos”. O pequeno fazendeiro mantinha as filhas em rédeas curtas. Namoro? Só se fosse com moço direito, de família, trabalhador, que pudesse sustentar mulher e filhos. Não deixaria suas filhas à mostra como rãs em beira de fonte, para servirem de comida às cobras.
Do alto sertão começaram a descer algumas famílias. A seca era o maior flagelo do sertão. Comparável com a peste negra nos tempos distantes. Com a maldição do cólera que matou muita gente em Sergipe, como lembravam os avós de Antero. A maior parte dos retirantes buscava a Cotinguiba ou Aracaju. Na cidade conhecida como “a porta do sertão” e nos seus povoados de beira de estrada, pouquíssimos procuravam se arranchar. Uma família, trazida no caminhão de Jessé deixou-se ficar no Cajueiro. Era onde Antero morava e lutava para tentar salvar as poucas e fracas rezes que morriam um pouquinho a cada dia. Família pequena: a mãe quase entrevada, uma filha e um filho. O rapaz, em bons tempos, teria boas feições. O mesmo se diga com relação à moça. Porém, naquele tempo de secura, até as feições das pessoas se desmanchavam, sumiam e as faces ficavam escavadas. As pessoas envelheciam com tanto sofrimento. Zé Roberto era o nome do rapaz, que por ali ficara com a mãe e a irmã, até que a mãe quase entrevada pudesse se recompor, para, enfim, seguirem em frente numa jornada sem destino.
Maria Cecília, a filha balzaquiana de Antero, botou os olhos negros nos olhos verdes do rapaz, que os desviou como se temesse que flechas mortais lhe pudessem ferir. “O moço é tímido”, pensou aquela que se encaminhava para o canto das vitalinas, das solteironas sem solução à vista. Antero arranjou trabalho para Zé Roberto, em troca de comida para ele, a mãe e a irmã. Ele o ajudaria na peleja com o gadinho por ora sobrevivente. Eram mãos que serviam mutuamente.
Passaram-se três semanas. Nuvens de trovoada se formaram nos últimos dias. Notícias vindas da Bahia davam conta de chuva caída na região da Serra Negra e redondezas. Antero encheu-se de esperança. Quem sabia se os relâmpagos vistos ao longe não seriam cambiados juntamente com trovões para aquelas bandas, trazendo uma boa chuvarada? Quem sabia se o ano novo não entraria debaixo de um aguaceiro como aquele de 1941, que arrombou tanques e aguadas? Enganou-se Antero. As nuvens que se formaram eram do tipo andejas. Ventos fortes as levaram para longe, sabia Deus para onde.
O moço Zé Roberto andava sempre de olhos baixos. Era de pouca conversa com Antero e sua mulher. E de nenhuma com as filhas deles. Nem as olhava direito. Maria Cecília, entretanto, o olhava esperançosa. Cidinha, a do meio, era muito encabulada. Era a que mais ajudava o pai na lida do gado. E era a mais graciosa das três. Ao passo que Maria Júlia, a caçula, era muito sonsa e parecia pronta a arrastar asas para o lado do rapaz, se o seu pai não fosse Antero. Ela e as irmãs sabiam muito bem que não deviam se insinuar para homem nenhum. Moça direita não se dava ao desfrute de sacudir as nacas diante de um homem. Um fim de tarde de sábado, Antero surpreendeu-se com Zé Roberto azeitando o cano de um fuzil. Era uma bela arma. Segundo disse o rapaz, Lampião, em 34, o dera ao seu pai, há um ano falecido. Arma antiga, mas em boas condições de tiro.
Mais duas semanas se passaram. Naquele meio tempo, Antero perdeu cinco rezes, duas vacas, um novilho e dois bezerros. Se não chovesse dentro de trinta dias, não sobraria uma semente bovina sequer. A mãe de Zé Roberto não adquiria melhora. E a família ia ficando até que Deus desse bom tempo.
Era o dia de Santos Reis. No meio da manhã, dois sujeitos mal-encarados acercaram-se de Antero, que lidava no curral, tentando levantar uma vaca de quartos caídos. Os dois estavam armados com facas peixeiras. Exigiram dinheiro. Antero disse que não tinha. Um deles cortou um pedaço da orelha direita de Antero. O sangue espirrou. Antero não deu um gemido. Naquele momento, Cidinha, a filha do meio, entrou no curral sem saber o que ali ocorria. O sujeito que cortou a orelha de Antero sorriu maliciosamente ao ver a moça e para ela se encaminhou de faca na mão. “Uma belezinha dessa vale mais do que o seu dinheiro, velho”, disse. A moça deu um grito. O cortador de orelhas a fez calar-se. Ameaçou-a. Quando o tipo fez menção de colocar a mão em Cidinha, ela caiu em prantos. Nisso, entrou Zé Roberto, com o fuzil nas mãos. “Arrede da moça”, ele disse. E emendou seguro, sem piscar: “Onde eu boto o meu fuzil, urubu também bota o bico. Eu faço defunto e ele come a carniça”. Os dois sujeitos largaram as facas. Tremeram. O moço do fuzil presenteado por Lampião ao seu pai botou os dois bandidos para correr. “Se vortá aqui, eu esparramo os miolo d’ôcêis no chão, pras galinhas fazê bom proveito”.
As chuvas só cairiam dois meses depois. Antero perdeu quase tudo. Não perdeu, todavia, a coragem para recomeçar. Seis meses depois das primeiras chuvas, ele e a mulher ganhariam um genro. O moço do fuzil desposaria Cidinha. Os olhos verdes dele cederam aos encantos dos olhos cor de mel da moça graciosa.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 06 de setembro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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