Aracaju (SE), 21 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 25/08/2023 às 19:01
Pub.: 25 de agosto de 2023

A manhã desastrada de Pirão Perdido :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

Pirão Perdido andava pelos cantos. Quase se arrastando. Uma coceira danada lhe fazia rodear e rodear-se. Na varanda sombrosa, na sala de estar, no terreiro, no quarto da Vivinha. Pobre sujeitinho carecedor de compaixão. Na casa de João Gordo, naquela manhã, ninguém dava trela a ele. Nem olhava. Não sei se alguém chegou a notar o chape-chape que o consumia em desconsolada agonia. Também, todo mundo daquela casa estava nas nuvens, cada qual pior do que o outro. Um desmantelo. A família vivia às turras por causa de uma herança mal dividida, dizia-se ali. Os irmãos de João Gordo, seis ao todo, entre homens e mulheres, disputavam algumas tarefas de terra, deixados pelo velho Filomeno, pai deles, oito anos depois que Maria de Filomeno, a mãe, se finara, botando a alma pela boca por um lote de anos, a pobre coitada. Morreu não se sabia de quê. Morreu. A morte andejava por ali e por acolá quando bem queria e entendia. Nada lhe botava cabresto.

Oito anos após o falecimento de Maria de Filomeno, foi a vez do próprio “seu” Filó bater as botas, esticar a canela, bater a caçoleta, ser metido no pijama de madeira ordinário do fabrico de Zé Bufa do Cão, marceneiro e agente funerário da cidadezinha que se espreguiçava à beira do riacho do Prego. Filomeno devia ter uns noventa e tantos anos. Porém, ainda era firme no manejo da roça, do gado, das terras e dos poucos empregados ao seu serviço. Homem de bem, do tipo que comprava e pagava, pagando, às vezes, antes mesmo de receber o que havia comprado. Falar algo contra “seu” Filó, ninguém jamais se atrevera. Não tinha do que falar. Não de mal. Falar dele tinha que ser de bem. E todos falavam. Não por bajulação. Por reconhecimento ao homem de atilado aprumo na vida.

O advogado Dr. João não sei das quantas, da capital, todo entretelado num terno cor de chumbo, ajustado, como se fosse de outra pessoa, andara espalhando falação sobre os quinhões de cada herdeiro. Era o advogado contratado por um dos irmãos de João Gordo, Joel de “seu” Filó, cuja mulher fazia conta de uma casca de siri podre, e o marido lhe dava ouvidos em tudo, tin-tin por tin-tin. À língua solta, comentava-se na cidade que ele só mudava de ceroulas se ela disse “sim”. Homem mandado por mulher, vestia calças de atrevido. Não devia. Os demais irmãos tinham outro advogado, Dr. Herculano Farias, homem de meia idade, advogado cordato, quando precisava ser, mas bom de briga, se para tanto houvesse carência. Era o advogado de quem tinha juízo e dinheiro para gastar. 

O inventário se arrastava. Inventariante? João Gordo, o primogênito, e o que mais se aproximava do aprumo do velho pai. Dor de cabeça. Prestar contas ao juiz de tudo que entrava e saía, através do advogado. Caderneta miúda com anotação de cada item. Joel, por intermédio do Dr. João não sei das quantas, implicava em tudo por tudo. João Gordo tinha a confiança e o respeito dos outros irmãos. Esbravejava contra a cunhada. Mulher desaforada, mandona, encrenqueira. Arrastava o marido, um bocó, para as confusões que ela queria e conseguia armar. 

O jovem magistrado, há pouco chegado na sede da Comarca, da qual a cidadezinha à beira do riacho do Prego era Termo, já estava quase a perder a paciência com o tal Dr. João, que, além de não demonstrar que conhecia a contento o Código Civil, menos ainda parecia conhecer o Código de Processo Civil. Cinco ou seis peças desconformes foram rejeitadas pelo juiz. “Vou entrar com um recurso”, avisava a Joel, seu constituinte. Acabava não entrando com nada. Nem com um agravinho de instrumento ou um retido nos autos. Nada. 

A bem dizer, a herança não deixaria ninguém mais aquinhoado do que cada um já era. Uns mais, outros menos. Joel, por sinal, era o melhor de vida. E o mais encrenqueiro, indo na cola da mulher, a rainha das encrencas. Na Rua do Sebo, onde o casal morava com os quatro filhos, e onde estava estabelecida a loja de tecidos do casal, uma ou outra pessoa se dava com ela. Freguesas, a loja já tinha perdido um bocado, por causa da cara de bicho de Marlúcia, esse o nome dela. Todavia, como era a única loja de tecidos da cidadezinha, acabava não faltando freguesia. Era no que dava a falta de concorrentes. 

Naquela manhã de terça-feira, Pirão Perdido não contaria com a atenção de ninguém. Rosnou umas três vezes, debaixo da mesa da copa. Ninguém ouviu. Todo mundo estava voltado para a partilha dos bens. O Dr. Herculano tinha apresentado o plano de partilha. O Dr. João não sei das quantas discordou. O juiz julgaria. Não tendo menores ou outros incapazes como herdeiros, o promotor não interviria. 

Pirão Perdido não tinha quengo para atinar sobre o que se passava naquela casa, naquela manhã em que ninguém lhe dava atenção. As preocupações de todo mundo eram muito mais importantes do que a sua coceira. Rosnou mais uma vez. Ninguém lhe ouviu. 
Que manhã desastrada!

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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