O riacho Boqueirão :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal
O Boqueirão banha um naco de terra, de pouca largura, nas fraldas do Betume e escorre fastioso para as baixadas de Ananias de Trajano Perebinha, encontrando por ali um laguinho de boas feições, lugar de coito de pererecas, do tipo caçotes verdes, a saltitarem daqui para ali, nas horas em que os machos dão de correr trechos em busca de folgar com as fêmeas. Naquelas baixadas, as águas do Boqueirão são um pouco encorpadas pelo riacho do Sangradouro, nascido na Lagoa Grande, no engenho Trincheiras, há muito de fogo morto, que pertencera, em tempos muito idos, a um tal de coronel Romano Vagalume, que, diziam línguas de trapo, era dado a acender o que apagado deveria sempre estar, para a vergonha da família e o silencioso desespero da mulher, dona Florinda. Que a todos Deus os tenha.
Por falar em Romano Vagalume, o seu nome de pia batismal era Romano José Félix Mourão de Valença, dos Félix Mourão de Penedo, nas Alagoas, gente de aprumado gosto para as matanças de inimigos, e dos Valença dali mesmo, que, em termos de beber sangue não ficavam para trás. Com o tempo, uns e outros foram amofinando. Ora por causa de muitas baixas também em seus clãs, ora pelas novas gerações, entregues aos estudos, com doutores de beca ou de maleta na mão, advogados e médicos, que tinham outros pensamentos, mas, um ou outro, ainda trazendo no sangue o azougue da brabeza dos antepassados, pois havia raízes que se esparramavam.
O riacho Boqueirão, encorpado pelo Sangradouro, atravessa as terras boas de pasto dos três irmãos Barreto de Souza, Joca, Júlio e Juarez, filhos bastardos do major Durvalino Barreto de Souza, mil e uma vezes deputado estadual e outras tantas vezes prefeito de Angicos. Ali estava um homem de bem. Metido na política desde os tempos de moço quase sem barba, todavia, respeitado por todos e a todos entregues no mais distinto atendimento. Um ricaço daquelas bandas ou um pé rapado, para Durvalino era tudo igual. Só não gostava de dar fiança a ladrão e a cabra safado de outros modos ruins: difamador, estuprador, matador por besteira e gente afim.
Depois das terras dos três irmãos, o Boqueirão torna-se quase um rio, recebendo a contribuição do riacho do Meio, mais encorpado que o Sangradouro, muito mais. A partir dali o Boqueirão muda de nome, ganha novo registro: riacho da Donzela. Dizem que a nova nomenclatura deriva de uma moça dos Araçás, que fora desgraçada, virgem que era, por um tal de Agostinho Olho de Cobra, jagunço do avô do coronel Romano Vagalume, sinhô Alfredão. A moça donzela chamava-se Maria de Dió, por sinal afilhada do Alfredão. Foi o fim do Olho de Cobra, que cobrou o que não lhe competia cobrar da pobre moça, exatamente ali, na beira do riacho, que, dantes, se chamava riacho do Corno, nome este que nunca se soube a razão. Nomezinho esquisito para um veio de águas correntes. O jagunço deflorador morreu pinicado a machado.
Passando em minhas terras, o Boqueirão é exageradamente piscoso. Por debaixo dos pés de ingá, os piaus se fartam com os frutos que, abertos de tão maduros, caem n’água e engordam os bichinhos, que a gente pesca e come-os assados na palha da bananeira. Nas duas margens do Boqueirão, ou melhor, do riacho da Donzela, o que não faltam são bananeiras e goiabeiras. Além dos piaus gordos, pescamos camarões de chorrio, ou seja, à vontade, às rumas. Ah, camarões de água doce, tratados e cozidos nos temperos, para comer com farofa d’água carregada na pimenta do reino e, para quem gosto tem, na malagueta – Santo Deus...! – é melhor do que o maná dos céus! Melhor ainda, com uma coisinha para molhar a goela. Quem tiver vontade e aprumo, dê um pulinho por lá. Faço somente três alertas: leve roupa de banho, jereré e soro antiofídico. Nunca se sabe.
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.
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