Aracaju (SE), 04 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 08/09/2023 às 11:52
Pub.: 08 de setembro de 2023

Os azeites de Amália de Zé Tourinho :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

Amália de Zé Tourinho, antigo sacristão da igreja de São Raimundo Nonato, na pequena cidade de Ribeirão dos Pretos Forros, amanhecera nos azeites. Ribeirão dos Pretos Forros ficava ali pertinho, umas duzentas e tantas léguas acima de Porto do Mato, lugar, este, onde Lampião teve medo de passar, porque uma cigana lhe dissera que num “porto, perto de um matagal, coisa muito ruim estava de tocaia, para dar fim dele”. Disse, então, que a tal “coisa ruim” era uma arma que pipocava um montão de balas de uma só vez. Virgulino nunca botou os pés por aquelas paragens, sempre cortando de banda, ao dali aproximar-se, duas ou três vezes.

Amália estava nos azeites contra o padre Belizário Varjão, um padre das antigas, metido numa batina preta meio fubanbenta, chapelão igualmente preto e surrado, cortando um bom fumo no cachimbo, os dentes amarelados, mas bem-postos na lasca de boca de português, há muito tempo amoitado por ali. Depois de tanto tempo no país, a língua do padre continuava meio-enrolada, preservando o falar português de Trás os Montes, região localizada ao Norte de Portugal, onde o inverno costuma ser mais rigoroso, em relação ao resto do país. Segundo o velho padre, o nome Trás os Montes foi dado devido a sua localização: atrás das montanhas do Marão e Alvão, que ficam ao Norte do rio Douro.

Ora, e por que Amália de Zé Tourinho, há seis anos viúva, estava a cuspir bala contra o padre Belizário? Era exatamente isso que Coralina Flores, beata donzela, queria saber. Coralina nunca se casara. Foi a única das sete filhas de Dorinha de Virgílio Coice de Jegue que permaneceu em estado de donzelice, embora nem todos concordavam com isso, pois línguas de trapo não faltavam em Ribeirão. Aliás, em lugar nenhum. Sussurrava-se na cidade que a tida como donzela andara de tró-ló-lo com um caixeiro viajante, que se arranchava, de passagem por Ribeirão, na pensão de Abdala Turco, que era vizinha à casa dos pais da suposta donzela. Mas, essa particularidade de Coralina Flores não vem ao caso. Importam os azeites de Amália. 

Não faziam dois meses que aportara em Ribeirão dos Pretos Forros um pastorzinho de Bíblia debaixo do sovaco, tagarelando de porta em porta, vendendo umas tantas Biblinhas de capa preta e letrinhas miúdas, que nem davam para ler direito. Pois chegara aos ouvidos de Amália, viúva de antigo sacristão e, mais que tudo, coordenadora do Apostolado da Oração, que o padre Belizário recebera em sua casa – sua casa, não, da Paróquia, como Amália vomitava – o tal pastor e com ele deixara-se estar em alentada conversa. Onde já se vira um padre, representante de Cristo, deixar-se levar pelo gogó de um tal pastor, que renegava a Virgem Maria e os santos? Que mandava quebrar imagens sacras? Que torcia a cara para o Crucificado? Um padre! Um padre dar-se a tamanho desplante! Pois o padre português, que devia estar gagá, haveria de ouvir poucas e boas. 

De sua casa, sempre na mais finura limpeza, para a casa paroquial, onde a empregada Maria de Severino Queixada mal dava conta de fazer as bacalhoadas do padre, que ele mesmo lhe ensinara a fazer, embora mais das vezes resmungava à hora de sentar-se à mesa, porque o azeite fora pouco, porque o bacalhau estava salgado, porque isto, porque aquilo, Amália parou uma dezena de vezes, para ouvir lorotas de transeuntes, que sabiam dos bofes quentes da viúva do sacristão. De casa, Amália saíra por volta das 8 horas, mas só conseguira chegar à casa do padre beirando as 11 horas. O dia estava nublado e chovera bem na noite anterior. 

Como sempre, a porta da casa paroquial estava aberta, o vento de junho adentrando sem pedir licença. E também sem pedir licença, Amália foi invadindo a casa carente de pintura. Estava acostumada. E tinha autoridade. Era a coordenadora do Apostolado da Oração e a encarregada de enfeitar a charola do padroeiro, nas festas de agosto. Ah, vinha gente de todo lugar para ver o mimo com que o santo padroeiro era enfeitado, cada ano mais bonito que o anterior! Justiça se fizesse a Amália: era caprichosa em tudo que fazia.

O padre Belizário estava no quintal da casa, sob o alpendre, atolado numa jaca mole, o mel dos bagos dourados escorrendo pelos cantos da boca. “Bom dia, seu padre”, disse Amália, entre dentes. Estava quase possessa. O padre acenou com a mão, a boca a deliciar-se com mais um bago da jaca, que lhe fora enviada por Tertulino do Bamburil. Que jaca! Igual era muito difícil de encontrar. Bagos pequenos, desfazendo-se em mel. Ao lado da jaca, uma tigela com farinha de mandioca, bem fininha, comprada a Zuzu Bufa de Véio, a melhor farinha das redondezas. O padre gostava assim: lambuzava o bago da jaca na farinha. Uma delícia a deitá-lo no colo do pecado da gula. 

O velho portuga fora informado dos azeites de Amália, aliás, com os quais já estava acostumado. Eram rompantes de momento. Após engolir mais um bago, o padre levantou-se, pegou um banquinho de madeira e ofereceu a Amália. “Minha boa Amália, ajude este velho padre a dar conta dessa gostosurinha. Faz favor, pois sim”? Amália atravessou um olhar duro em direção ao padre. Bufou como uma onça enraivada. Sacudiu as cadeiras. Olhou para Maria de Severino Queixada, que parecia querer sorrir. Esteve a ponto de explodir diante do descaso do padre. Botou as mãos nos quartos. Tornou a olhar para o padre, que continuou na gulodice. O olhar azougado fez-se mais ameno. Tangeu para lá as sandálias. Sentou-se no banquinho de madeira. E meteu a mão na jaca.

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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