Rio Comprido :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal
Depois do tempo seco, quando fauna e flora parecem ter sumido para sempre das terras catingueiras, quando o mandacaru se atreve a vestir-se de floradas, e a flor de mandacaru é das mais suntuosas que a caatinga oferece para o deleite da vista da gente, a invernada desce, fazendo cascata em tudo que é declive, então o Rio Comprido estica braços e pernas, ganha porte de truculência aquosa, espraiando-se pelos baixios, metendo medo nos passantes, mas trazendo de volta a vida verdosa de ervas, capins e arbustos, a marmelada gordurosa voltando à vida para engordar algum gadinho sobrevivente. O sertão é assim. Esturricado nas secas, mas pulsante de vidas nos dias chuvosos. Se o sertão enverdece, aparece logo uma profusão de bichos de todo tipo.
O rio Comprido vem da gruta de Mané Caroço, proprietário de uma engenhoca de moer cana para fazer pães de açúcar mascavo, no antigamente, no muito antigamente. E nisso bote antigamente. A gruta é uma preciosidade de sombra e quietude. A água moureja das profundezas da terra, por um veio de pedra esbranquiçado, aguazinha fria de doer no dente, cristalina a não mais poder. Não se sabe quem, nem quando, mas alguém botou uma pequena formação em bica, feita de grosso bambu, na verdade, taquara, que por ali ainda tem em certa abundância, dali só uma ou outra pessoa retirando uma taboca para fazer mastro nas festas juninas, como ainda se faz por ali, em persistente mantença de tão salutar e sublime manifestação popular, que vem de tempos imemoriais e tudo tem para varar tempos infindos.
E por falar em festas de junho, estas pegam fogo no Nordeste inteiro, mais aqui ou menos ali, contudo, botando em polvorosa o coração da gente. Ah, um agoniado arrasta-pé, em salão de terra batida ou numa praça entupida de gente! Não há de ter melhor coisa a fazer nos dias dos santos festeiros, Antônio, João e Pedro. E as comidas desse abençoado tempo...? Quem a elas pode resistir? Mesmo o sujeito que tem no corpo a semente malfazeja da tal diabetes, não há de renegar um prato de canjica ou uma terrina de pamonhas. Um manauê de milho, de macaxeira ou de puba... Um licor de jenipapo ou de murici, de jabuticaba ou de umbu... Para dizer a verdade, um licor caseiro é sempre um licor de grande valimento. E se for da feitura de Maria de Zé Bruguelo, aquela do Beco de Maria de Dudé Rolinha, aí é mesmo de tinir. Igual não há, nem por estas bandas do rio Comprido, nem por outras bandas quaisquer. Não, não há. Disso prova eu dou, porque já provei quase tudo que é licor de fabrico doméstico ou de finuras de festejados restaurantes. Nenhum licor estrangeiro bota poeira nos licores de Maria de Zé Bruguelo, que herdou da mãe o modo do bom fabrico.
Embora de curta metragem, o rio Comprido, mesmo com toda a sua finura em tempos mais secos, é muito importante para a regiãozinha por onde ele se bota a correr. Todo veio de água corrente tem a sua aprumada serventia. Água viva, a correr sem pressa nos estios, ou a danar-se a correr mais que ligeira nos invernos de volumosos aguaceiros ou nas desesperadas trovoadas. Pois sim, as trovoadas parecem quedas d’água em desalentado desespero, enxurradas ligeiras, raios e trovões fazendo festa nos céus e aterrorizando amedrontadas pessoas. O rio Comprido é uma bênção, como toda água é, deveras, abençoada, permanente seiva da vida. Por isso, se diz no sertão, rio Comprido acima ou abaixo, que ninguém nega um caneco d’água a um sedento. Só um infeliz da costela oca pode dar-se a tão descarada negação.
Há quem conte, na feira de Candeias, que uma senhora deu de vender canecos d’água na seca de 1932. Água barrenta de algum resistente poço. O padre do lugar esbravejou que era até pecado tirar alguma nica dos pobres em troca de um caneco d’água.
A mulher não se deu conta disso, da falação do padre. Continuou vendendo seus canecos d’água até o dia em que, numa das trovoadas brabas de janeiro, um raio caiu sobre ela no terreiro da casa, enquanto apanhava roupa enxuta, estendida num fio de arame farpado. Até hoje, se diz na região do rio Comprido, que o raio caído foi um castigo dos céus. Onde já se viu vender um caneco d’água, mesmo nos tempos danados de seca?
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.
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