Cachimbo de Porca :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal
O intendente Damião Ventura Neto, vulgo Coroné Venturinha, para os amigos, e Damião Cachimbo de Porca, na boca dos vadios dentre os que lhe faziam cerrada oposição, sem que ninguém jamais tivesse tutano nos ossos para assim chamá-lo fuça com fuça, estava de rota batida em direção ao povoado Ribeira de Cima, cercado por jagunços e policiais cedidos pelo governo, que não se sustentava de pé, a aposição lhe corroendo por baixo como fogo de monturo a queimar de forma continuada, mas sem mostrar labaredas. Vinha azucrinado para dar cabo da família de Tuca Corcunda, cujo irmão andava de conluio com Lampião fazia um lote de meses.
Cachimbo de Porca era o tipo de político cretino, que zombava do povo, mas comprava os votos de que precisava para eleger-se ou para eleger seus apaniguados desde o fim do Império. Tinha longevidade no ramo da política. Gostava de angariar os votos dos eleitores em troca de favores, dando um par de alpercata para os mais simplórios ou um par de sapatos, para os mais aquinhoados. Na maioria das vezes, entregava um pé de alpercata ou de sapato antes da eleição e o outro pé após a apuração dos votos, por segurança. Vivia a fanfar em cima dos eleitores.
O presidente Getúlio fazia quase dois anos no poder e nem dava sinal de querer eleição. Tomara posse do governo como se fosse sua fazenda de bois, em Bajé. Estava de bom gosto, governando sem eleição. No Estado, a briga entre os puxa-sacos do presidente colocava o governador numa gangorra, ora subindo, ora descendo, no gosto do povo e dos coronéis da política provinciana. Já se falava em mudança no governo estadual. Ladino, Getúlio se enredava com uns e com outros. Tirava proveito de todos e ficava com o lado que lhe parecia mais subserviente, como bem convinha a um candidato a ditador.
Samuel Cabelão não se deu por rogado. Cutucou daqui e dali. Até discurso ele fez, na bodega da viúva do finado João Cotó. Tomou uns tragos. Engrossou a voz. Deitou falação. Parecia Jardelino de Ranulfo Corno Manso, vendedor de bugigangas na feira do povoado, que se esguedelhava no anúncio de suas miudezas. O intendente Damião Cachimbo de Porca ia-se ver com ele. Vinha armado? Cercado por jagunços e policiais, também jagunços? Medo não tinha. Ele os enfrentaria, mesmo sozinho. Naquele povoado de gente descadeirada, de gente sem cabelo nos buracos das ventas, sem sangue nos olhos, o intendente não cantaria de galo. Cabelão não se amofinava com uma nem duas. Para tanto fora criado pelo avô, Belarmino de Américo Tiririca.
Ante a iminente chegada do intendente, a viúva bodegueira propôs vender a propriedade a Cacilda Flores, também viúva, e, segundo fontes bem situadas, ´possuía boas patacas em lugar seguro. A viúva de João Cotó ofereceu a bodega por um conto e duzentos mil réis. Cacilda arregalou o olho direito, pois o esquerdo estava fechado por uma picada de marimbondo, daquele avermelhado, e berrou: “Ô criatura, tu pensa que dinheiro é como fedor de traseiro, que todo mundo tem”? O negócio não saiu.
Acreditava-se que o intendente Cachimbo de Porca daria cabo do irmão do comparsa de Lampião e de toda sua gente. Quem sabia, até dos seus mais chegados parentes e amigos. Isso queria dizer a metade do povo dali. Família grande, grandona mesmo. Lampião tinha tomado o dinheiro do gado que o intendente vendera no Logradouro, que dali vinha pelas mãos do seu filho mais velho, Aderaldo, que apanhou de fazer dó, por negar que tinha dinheiro, quando as notas ensebadas foram achadas debaixo de arção da sela. Falava-se em quinze contos de réis, em vinte contos e até em mais. Cada qual dizia uma quantia.
Julião Cabelo de Fogo, irmão de Tuca Corcunda, aderiu ao bando de Lampião quando este e seus asseclas passaram pelo povoado, em maio, quatro meses antes. O intendente Cachimbo de Porca, não podendo vingar-se de Lampião, nem de Cabelo de Fogo, vingar-se-ia de sua parentela. O desaforo do cangaceiro não haveria de ficar barato.
Passava um tiquinho do meio-dia, quando um moleque da cor do chão de massapê apareceu, desembestado, numa eguinha ruça, gritando: “A força vem aí! A força vem aí”!
Portas e janelas foram cerradas no povoado. De pé, armas em punho e na cintura, armado até os dentes, só ficou Samuel Cabelão. Morreria, como pensava, mas levaria alguns com ele. O próprio Cachimbo de Porca seria o seu primeiro alvo.
Na descida da ladeira da Onça Pintada, árvores por todos os lados, caminho estreito, sombroso, o chapéu de Cachimbo de Porca tocando os galhos, eis que uma jiboia se aprumou e esticou-se para enrolar-se no pescoço dele. Os acompanhantes do intendente mal tiveram tempo para se assustar. O alvo do réptil constritor deu ao chão, a jiboia sufocando-o, mais e mais.
Não teve invasão do povoado. Não teve tiroteio. Não teve carnificina. Cachimbo de Porca foi velado na Intendência. O governador compareceu ao enterro. Foi a última vez que ele foi a um enterro. Morreria três semanas depois, alvo de um sargento tresloucado, cuja irmã menor o governador tinha passado para os peitos.
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.