Aracaju (SE), 03 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 17/10/2023 às 09:40
Pub.: 17 de outubro de 2023

O PECADO DE JOÃO DE BELINHA :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

João de Belinha saiu da casa dos pais, na estrada do Grotão, casinha caiada de novo, simples como simples era a vida dali, daquele fim de mundo, onde Judas perdeu as botas, mas onde as pessoas tinham cabeça erguida, sem baixar o cangote para ninguém. Povoadozinho de poucas casas, de pouca gente, metida na lavoura do algodão.  

João de Belinha saiu se coçando como sagui. Tinha um problemão para dar conta, se pudesse, ou seja, se coragem não lhe faltasse na hora “h”. No dizer de Belinha, mãe de João, tinha problema de grande monta, que nem com reza de santo macho se resolvia. E, por acaso, santo macho tinha mais influência junto a Nosso Senhor Jesus Cristo do que as santas, do que Santa Madalena, discípula do Divino Mestre, do que Santa Clara, irmã de fé do Santinho de Assis, o mais santo dos santos dentre os viventes que neste mundo decidiram servir ao Senhor? Do que Santa Rita de Cássia, a santa das causas impossíveis? Do que Santa Bárbara, a das tempestades? Sabia-se lá! O machismo, dizia Dona Júlia de Tonho Miúdo, mais igrejeira do que muitos padres, perambulava até dentro da Igreja. Santo ou Santa era tudo a mesma coisa. Ou devia ser. Para alguns, até um santo de pau oco seria mais importante do que a santaria feminina toda reunida. Um despropósito!  

O riacho do Pau D’Arco tinha botado uma cheia das brabas, no inverno que findara há pouco. O aguaceiro da segunda semana de julho, mês de Senhora Santana, não foi de brincadeira. Cercas de arame farpado foram arrastadas, bezerros desprevenidos foram engolidos, barrancos foram desprendidos, árvores boiando riacho abaixo. A passagem da ladeira do Itapema recebeu água até os olhos dos pés de paus, das ingazeiras cujas ramagens ficaram submersas. Nenhum afoito se atreveu a desafiar as águas do Pau D’Arco, naquela passagem.   

João de Belinha atravessou o riacho com água na barriga do cavalo. Mesmo com água naquela altura, o riacho tinha força. Água corrente é bicho forte, traiçoeiro. Corria o início de setembro. A cidade distava cerca de dois quilômetros e meio, pouco menos de meia légua. O quengo do menino fervia. Tinha que abrir o jogo, contar tudo, um pecadão do tamanho dele. O frei Lauro, alemaozão corpulento, vozeirão enrolado, não haveria de lhe perdoar com mais nem menos. Bruto, como um tolete caprichado, o alemão haveria de abrir os olhos injetados de sangue, inchar o gomo do pescoço e vociferar uns despautérios, até aclamar-se e proferir a sentença. “Vocerr non terr salvacón”!  

João de Belinha estudava na escola paroquial, regida pela prima de sua mãe, Antonieta de Zé Galo. Nos dias letivos ficava na casa dos avós maternos, “seu” Dió de Jardelino e Dona Carmosita. Entregue ao catecismo, às ladainhas e a tudo mais que dizia respeito às “coisas do alto”, o menino estava sendo instrumentalizado para ser padre. Era o desejo de Dona Belinha e de Dona Carmosita. Por ora, era coroinha. O pai, Robertão do finado Armando das Trincheiras, não opinava. Preferia ver o filho tocando as roças, ao lado dos irmãos mais velhos, mas deixava ao gosto da mulher e da sogra o futuro do caçula.  

João de Belinha estava com onze anos de idade. Não era uma inteligência rara, mas não fazia vergonha diante dos outros meninos da escola paroquial. Todos atrasados nos estudos, menos ele. Muitas reprovações. A professora era caprichosa e exigente, na sala multisseriada. Além das lições normais, ensinava as boas práticas religiosas e a defesa do meio ambiente, num tempo em que isso não era levado em conta por muita gente. Cuidar dos animais e das plantas, dizia ela, era obrigação de todos. Uma plantinha, um passarinho, um preá, tudo deveria ser tratado com zelo. No ano vindouro, tudo fazia crer que João de Belinha e mais uns dois ou três, do quarto ano, passariam para o ginásio, caso fossem aprovados no exame de admissão. 

Chegando à cidade, ele criou coragem e foi-se defrontar com o frei Lauro. Encontrou-o na secretaria paroquial, fazendo anotações num livro grande, de capa grossa. “Bom dia, frei Lauro. Com licença”. O alemão mal tirou os olhos do livro e respondeu: “Bom dia, ‘seo’ Joon. Que tu querr”? João de Belinha gaguejou um pouco, pigarreou e disse: “Eu... Eu quero confessar um pecado”. O frei suspirou forte, como uma máquina resfolegando. “Tu feize una pecado grande, han”? Levantou-se, pegou uma estola roxa que estava sobre um armário de madeira, mandou o garoto ajoelhar-se e fazer o ato de contrição. “Agorra dizerr pecado”.  

Trêmulo, João de Belinha começou a detalhar o terrível pecado cometido. “Eu fiz uma coisa muito feia, frei”. O alemão franziu a testa suarenta. “Que cosa tu feize, Joon? Feize cosa feia com outra persona”? E João: “Não, sinhô. Foi sozinho”. O frei corpulento apertou os olhos. “Que tu feize, entón, diga”?! João de Belinha tremia como vara verde. “Fiz... Fiz uma coisa feia com a mão”. Frei Lauro quase deu um pinote. “Entón, tu feize una cosa feia, sozinho, com a món, Joon? Que cosa foi esto, filha de Deós”?  

João de Belinha desembuchou de vez: “Frei Lauro, me perdoe. Eu não quero ir pro inferno. Eu joguei pedra num passarinho”. O frei quase teve um treco. “Entón, tu quiere matarr-me de sosto, han”? 

Atirar pedra num passarinho era, sim, uma coisa feia, que se podia fazer sozinho e com a mão. Ora bolas!

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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