Aracaju (SE), 04 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 27/11/2023 às 09:05
Pub.: 27 de novembro de 2023

FILME PARA ADULTOS :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

De fato, a cidade vivia momentos agitados. Há três dias, o carro de som de Zé Biriba rodava para cima e para baixo, anunciando o filme que o Cine São José exibiria na sexta-feira, dia, aliás, incomum para sessão cinematográfica na cidade. As sessões eram às quintas-feiras, um policial ou algo do gênero, aos sábados, repetido no domingo, exibia-se um drama, que o povo chamava filme de amor, e às segundas-feiras, aí, sim, o dia de glória para os cinéfilos inveterados: um bangue-bangue ou um espadachim. Às segundas-feiras também eram exibidos os famosos seriados, além do jornal da Atlântida ou outro.

O anúncio dos três últimos dias, foi feito pela voz de “seu” Mário, carioca, gente da melhor qualidade, gerente do cinema e introdutor o voleibol na cidade, num arremedo de quadra de chão batido com uma rede quase puída, mas que fazia a festa dos introduzidos naquela modalidade esportiva.

“Pela primeira vez nesta cidade, o Cine São José irá exibir um sensacional filme para adultos. Somente homens poderão participar dessa inusitada sessão cinematográfica. Um brinde do Cine São José aos seus frequentadores de bom gosto”.

Na verdade, um escândalo. Filme só para homens, era uma esculhambação. As beatas da Praça da Matriz se mobilizaram. Foram ao padre. “O senhor tem o dever de impedir essa pouca vergonha. Onde já se viu uma cidade cristã, protegida pela Virgem Mãe, se entregar a tamanho descaramento? E o prefeito onde está? E o delegado? O juiz? Todos dormindo! Então, só resta o senhor, padre Araújo”, vociferou Dona Terezinha do finado João de Véio. Encurralado, o padre prometeu conversar com “seu” Mário.

“Seu” Mário já não era bem visto pelas beatas de língua ferina, que não eram poucas, por causa de sua condição familiar: era desquitado. Um sacrilégio! Diziam que ele deixara a mulher no Rio de Janeiro com cinco filhos ao deus-dará. Se não era verdade, inventaram. O que não faltavam na cidade eram bocas rotas e ligeiras em invencionices.

O padre era também o diretor do ginásio local. Advertiu, de sala em sala, quatro ao todo, que aluno da escola não deveria ir ao cinema para aquela sessão de sem-vergonhices. Nem mesmo os maiores de 18 anos. Que dureza! Depois, foi ter com “seu” Mário, para ouvir explicações sobre o tal filme. O gerente do Cine São José acalmou o padre. Era um filme científico, que tratava de novas tecnologias obstetrícias para partos ditos sem dor. Mostrou a sinopse do filme. Não se tratava de filme de safadeza, de sexo explícito, que, naquele tempo, nem tinha ainda. O juiz, o promotor e o delegado já tinham recebido notícias da sinopse. Estava tudo nos conformes.

Na bendita sexta-feira, as duzentas e vinte cadeiras do cinema não deram para acomodar o público. Uns cinquenta homens se espremeram nos três corredores, os dois laterais e o central. O filme estava contido em duas latas, ou seja, em dois rolos. Mal começara a exibição, Milton de Tranca Rua foi instado pelo padre, com autorização de “seu” Mário, a interromper. Luzes acesas, o padre saiu de fileira em fileira, à cata de possíveis alunos do ginásio, que pudessem ter transgredido suas ordens. Achou dois deles, adultos, e acompanhados pelos pais. O padre praguejou, soltou impropérios contra os dois pais, mas foi contido por um deles, que tomou as dores dos dois rapazes, dele e do outro pai: “Por que o senhor não vai rezar o terço, na sua igreja? Aqui não é lugar para padre. O senhor não tem o direito de ver o que a gente está vendo. Vou conversar com o senhor bispo, no Aracaju. Terça-feira, eu vou bater à porta da Cúria”. Atordoado, o padre deixou o recinto. Continuou a exibição.

Um aluno da sexta série, menor de idade, mas amigo do gerente do cinema, conseguiu entrar, mas escondeu-se no banheiro quando o padre adentrou à sala de projeção. Denunciado, depois, pegou dez dias de suspensão. Tornou-se um desafeto do padre-diretor.

O filme frustrou a maioria dos espectadores. “Não tinha nada demais”, reclamou Eládio Mota. “Perdi meu dinheiro”. Os homens esperavam cenas picantes entre homens e mulheres. Cenas cabeludas. Não houve nada daquilo. O filme era monótono. Deu sono em muita gente. Uma enganação. Protestos na saída. “Seu” Mário foi acusado de mentir para o público. Este, contudo, defendeu-se: “Meus amigos, eu não menti. Não disse o que o filme continha. Disse apenas que era filme para adultos, para homens. Só isso. O senhor, ‘seu’ Álvaro, queria que a sua mulher estivesse aqui, no meio de tantos homens, para assistir a esse filme, hein? Não ia querer, não é mesmo”?

Um filme científico, para adultos. De fato, um documentário. Em inglês. Sem legendas. Ainda assim, lá na frente, onde tomou assento um bando de rapazes folgados, o piso do cinema ficou escorregadio.

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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