Aracaju (SE), 21 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 05/12/2023 às 09:25
Pub.: 05 de dezembro de 2023

MUNDO DESANDADO :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

O mundo desandou. Ao menos, o mundo em Sítios Altos, nos confins do sertão do Ariri, lá para as bandas do rio das Onças, regiãozinha cheia de caipiras valentes, de sangue nas butucas dos olhos e de pelos nos buracos das ventas. Sertão de homens ciosos com três coisas das quais não abriam mãos: mulher, nome de família e terras. Se alguém mexesse com uma delas, era confusão na certa, que, não raro, acabava em cheiro de defunto. 

Desandou o mundo para Severino de Maia das Pias, filha de Ramiro Teixeira de Brito e neta de João Rodolfo Teixeira de Brito. O pai, escrivão do assentamento de registros civis, e o avô, um antigo tropeiro, que passara a vida transportando mercadorias de Sertãozinho dos Confins para Sítios Altos, no lombo de dez ou doze parelhas de burros. A tropa de João Rodolfo era o trem sem trilhos a cortar os caminhos arnosos ou pedregosos daqueles sertões largados a não ter fim. 

Um sujeito descarado meteu-se com uma afilhada de Severino, Duquinha, órfã de pai, e, pois, tendo nele, o padrinho, o garantidor de sua honradez. Deu o tal sujeito, um caixeiro-viajante, que falava enrolado, de fazer ponto de parada no telheiro da viúva Alcina do finado Pedro Costa de Ferro, para tomar um dedo de prosa com Duquinha. Pois, dedo de prosa daqui e dedo de prosa dali, eis que Duquinha, morena de belas feições, melhor corpo bem ancado e de outros bons apetrechos, apareceu de bucho em teimoso crescimento. A escassa vizinhança, ali no Beco de Baixo, não teve outro assunto para botar em dia, se era que precisava botar em dia o que em plena luz do dia acontecera. Foi na manhã em que a viúva Alcina, mãe de Duquinha, deixou-a sozinha de conversa com o caixeiro-viajante, que a desgraça se deu. 

Depois do malfadado acontecimento, que, deveras, não deveria ter acontecido, o caixeiro-viajante não deu mais a cara por ali. Sumiu como vento que passa apagando rastros. Severino de Maria das Pias fora informado da desgraça que se abatera sobre a afilhada sem pai. Era tardezinha, o sol escorrendo no outro lado do céu pontilhado de vermelho e dourado, quando o padrinho tomara conhecimento do infortúnio de Duquinha. Uma mulher perdida, falada pelos cantos, de bucho em desabalado crescimento, o malfeitor tendo dado o fora, sem assumir o que era de sua responsabilidade, era o caso de ser tomada a devida providência. 

Onde dar com o caixeiro-viajante? Onde seria o seu pouso de demora? Ou onde o encontrar em pousos de arribada? Sairia pelo mundo. Aqui ou ali, ali ou acolá, haveria de dar de frente com ele. Casamento ou miolos esparramados pelo chão, para serem lambidos pelos cães de rua. 

Sábado, o orvalho caindo sobre a grama do terreiro da casa de Severino, o padrinho de Duquinha meteu os arreios no cavalo ruço, despediu-se da mulher, Cecília de João de Doca, beijou a testa do filho de dois anos, embalado pela mãe, meteu o pé no estribo, montou e chispou. Atravessou as Vassourinhas, o Monjolo, o Pau D’Arco, a Lagoa Santa e a Baixa das Capivaras, ficando para trás o sertão. Paradas, só duas, para dar de beber ao animal, no riacho do Bacurau e na lagoa de Afonso Pé de Vento. Comeu uns nacos de beiju de coco com umas lascas de carne de bode defumada. Bebeu da cabaça. Tocou em frente. Chegaria em Maravilha, cidade aproximada, à boquinha da noite. Lá, deveria, com sorte, ter notícia do caixeiro-viajante. 

De fato, na exata hora em que o sino da igreja de São Lázaro badalava as Ave-Marias, Severino foi entrando na cidade. Ali, morava um primo, Raimundo Teixeira, ferreiro afamado. Tocou para a casa do primo. Ao passar em frente à Prefeitura Municipal, na rua calçada com pedra bruta, aliás, a única pavimentada, afora a praça da Matriz, que sorte! Ali estava de conversa com dois outros homens, o tal caixeiro-viajante, que ele bem conhecia. Severino apeou de arma na mão. Os outros dois afastaram-se. 

Tendo o sangue fugido das veias, ante o cano do revólver para si apontado, Tufik Salum, este o nome do caixeiro-viajante, disse, com voz trêmula: “Dorquinha me falar do senhor, ‘seu’ Severrino. Eu o conhecer de vista. Estes duas, disse apontando os dois homens afastados, são meus primas, donas de loja. Eu vim convidar os duas parra padrinhas da meu casamento com Dorquinha. Eles aceitar. Ali está o minha Jeepa com toda enxoval que comprar parra ela e o bebê, que vai nascer. Amanhã mesmo estar indo parra lá”. 

Severino fitou com dureza os olhos do caixeiro-viajante. Estaria com conversa fiada? Baixou a arma. Os dois homens aproximaram-se. Com falas também enroladas, ofereceram pousada. Nisso, o primo de Severino foi passando. Espantou-se ao ver o primo de arma na mão. “O que houve, primo Severino”?

Tufik falava a verdade. No dia seguinte, de fato, ele foi ter com Duquinha, para marcar o casamento. O Jeep roncando na frente e Severino, a cavalo, chispando atrás.

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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