Os sonhos de Francisco :: Por José Lima Santana
José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal
Pouco passava das dez da noite, quando um galo lascou uma cantoria de repetição. Cantou. Esperou resposta. Não veio. Tornou a cantar. Nada. Pela terceira vez, fez ecoar no mundo outro canto. Nada. Não era hora de galo cantar. Endoideceu. Galo leso, perdido. Merecia ir parar na panela. Pelo calibre do canto, quem disso bem conhecia, dava para perceber logo que era galo novo, mal e mal tendo sido promovido de frango a galo. Querendo mostrar serviço, mas desorientado. A lua cheia devia tê-lo esquentado o quengo. Pobre galo!
Galo cantou fora de hora, moça solteira vai-se embora. Era o dito do sertão, tiro e queda. Francisco recolhera-se logo após o canto do galo doido. Dia puxado, recebendo e conferindo mercadorias, na Casa Comercial Novo Horizonte. Era o homem da família desde a morte do pai, há cinco anos. Aos quatorze anos, assumira as responsabilidades de chefe de família, composta pela mãe e os três irmãos, um menino e duas quase mocinhas. Demonstrara tino para os negócios, o armazém de secos e molhados, a panificação e as duas fazendas de gado.
Conhecera Rosana Maria numa tardezinha em que ela e a mãe fizeram algumas compras. De relance, ao vê-la, passou o rabo do olho para ela. Segurou o olhar de soslaio até que ela também o olhou. Nada puderam dizer um ao outro. Nem se aproximaram. Não era preciso. Um átimo foi o bastante. Falta de fôlego. Coração em desalinho, pulsando em desmedida. O suor encharcou o pescoço. Passou o lenço no cangote.
Na saída, a formosa flor, como ele a denominara no pensamento, voltou-se ligeiramente. Ele estremeceu da cabeça aos pés. Conhecia, de vista, a mãe; não a filha. Sabia que eram da família dos Rocha, gente de tutano nos ossos. O padre Anacleto, seu amigo de infância, embora poucos anos mais velho, era da família Rocha, portanto, devia ser aparentado com a formosa flor. Qual o seu nome? Ele precisava saber. Quem sabia, o padre não lhe facilitaria uma ida à casa dela, num dia em que ele fosse por lá para dizer missa? Ele o consultaria. Tentaria um arranjo.
Naquela noite de galo cantando fora de hora, Francisco mexeu-se e remexeu-se na cama por longo tempo. O sono parecia ter sacado nos olhos. Devia ser madrugadinha quando o sono veio fechar-lhe as pálpebras, no momento em que por longe, bem por longe, ouviu outro galo cantar. Já não teve tempo para ouvir as respostas de outros galos.
Francisco, atingido pela flecha de Cupido, que lhe acertara no meio do coração, cravada com força, teve sonhos. Sonhou com a sacaria de produtos que não paravam de chegar ao armazém. Sonhou com o pai a dizer-lhe para ter no amor o mesmo tino que tinha para os negócios. O pai sentado, colocando o chapéu de baeta, novo, na cabeça do filho, como a transmitir-lhe o seu legado. No sonho, ele, Francisco, ainda era um menino de calças curtas. Sonho meio sem pé nem cabeça. Um menino não poderia ter tino para tocar os negócios da família, muito menos para o amor. Um sonho sucedia ao outro. Agora, ele sonhava com a formosa flor.
Este último sonho dava conta de que ele encontrava a formosa flor em sua casa. Conversando com o padre amigo, não em sonho, mas em conversa amistosa, soube que ela se chamava Rosana Maria. Voltando ao sonho, ali estava ele em casa dela, numa festa, na qual o amigo padre, primo da formosa flor, em terceiro grau, promoveria uma procissão, após um dia inteiro de comes e bebes. Sonho agoniado. O sonho o impelia a raptar a formosa flor, pois, por certo, o seu pai, Mamede Rocha, jamais autorizaria o namoro deles, por uma boa razão. Um tio do pai de Francisco assassinara um Rocha, há trinta anos, numa rixa por causa de mulher, mas de mulher de vida livre, na Lagoa Seca. O assassino fora a júri e saíra livre, por força do bom advogado que contratara e porque, no sertão daquele tempo, a honra de um sujeito era lavada com sangue. O morto tentara tomar o enrabichamento do tio-avô de Francisco, coisa que não se devia fazer, mesmo em se tratando de uma mulher de amor transitório. Por esse motivo, era bem provável, ou certo mesmo, que o pai da formosa flor não haveria de consentir a união dos dois.
Era um caso para rapto. No tumultuado sonho, eis que, acertados em surdina, os dois jovens ganharam o mundo em bons cavalos montados. Era o jeito de se casarem. A honra da casa de Mamede Rocha seria limpa com o casamento. Moça roubada por rapaz distinto devia ser levada para a casa de alguém de respeito, jamais para a casa dos pais do raptor, pois nesse último caso seria uma desfeita muito grande.
No sonho, Francisco levara a formosa flor para a casa do seu padrinho de batismo, major com patente comprada na Guarda Nacional, embora esta já não mais existia, homem da maior consideração em toda a redondeza. A família da moça fizera-se nas armas, tomando o rumo da cidade, da casa comercial do raptor. Tumulto. A mãe de Francisco dando chilique à vista de uma arma na mão do irmão mais novo da formosa flor. Gente na calçada e nas cercanias do armazém, aguardando o desfecho do caso. Ele, Francisco, tentando explicar o seu feito ao pai da moça. Sonho tumultuado.
Uma voz na porta do quarto: –“Francisco...! Francisco, meu filho, já são seis horas. O café está na mesa”. Era a mãe chamando-o para o café da manhã. Levantou-se, passando a mão nos olhos remelentos e ainda carentes de sono.
Os sonhos foram tumultuados. A imagem do pai não lhe sairia da cabeça, como não lhe sairia a imagem da formosa flor sendo por ele raptada.
(*) Este texto fecha o ciclo dos textos intitulados “Galo cantou fora de hora”, aqui publicados nas três últimas semanas.
Leia também:
Galo cantou fora de hora (II) :: Por José Lima Santana
Galo cantou fora de hora (I) :: Por José Lima Santana
Galo cantou fora de hora :: Por José Lima Santana
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.