As Engomadeiras :: Por José Lima Santana
José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal
A vida nas cidades evoluiu. Desde os tempos medievos. Das antigas corporações de ofícios restaram, ao longo dos anos, os artesãos e outros profissionais afins. No meu tempo de menino, em minha cidade, Nossa Senhora das Dores (SE), destacavam-se alfaiates, sapateiros, ferreiros, latoeiros, marceneiros, carpinas, costureiras, doceiras, lavadeiras, engomadeiras, dentre outros. Alguns e algumas mais procurados (as). Com o tempo e as novidades industriais, algumas dessas atividades foram perdendo terreno. As lavadeiras e as engomadeiras tinham trabalhos que, em tese, se complementavam.
Sobre as lavadeiras, eu já escrevi, mais de uma vez, inclusive o conto “A Pedra de Anil”, que abre o meu livro “Beiço de Jegue e Outros Escritos” (São Paulo: Scortecci Editora, 2019, p. 13-16). Agora, falarei sobre algumas das engomadeiras que eu conheci.
Maria Benta foi nossa vizinha, na Rua Gilberto Amado, onde está situada a casa da minha família, desde 1962. Maria Benta era também chamada de Maria de Nacinha, sendo esta a sua mãe. Maria vivia de amigação com Domingos Peixeiro, inveterado jogador de baralho. Ora, o casal se separava, pois Domingos era um contumaz raparigueiro, ora, o casal voltava às boas. E assim viveram por muito tempo, juntando-se e separando-se.
Menino aureolado pela inocência própria da idade, e pela falta de maiores conhecimentos, eu achava que a nossa vizinha era a mesma Maria Benta da música “Peba na Pimenta”, composição de João do Vale, Adelino Rivera e José Batista, que foi cantada por muita gente, a exemplo de Ivon Curi, Marinês, João do Vale, Dominguinhos e por aí vai. A música diz, na sua primeira estrofe: “Seu Malaquias preparou / Cinco pebas na pimenta / Só do povo de Campinas / Seu Malaquaias convidou mais de quarenta / Entre todos os convidados / Pra comer peba, foi também Maria Benta”.
Maria Benta era uma das mais disputadas engomadeiras da cidade, no dia-a-dia. Em tempos de festas, então, em setembro, na Festa da Padroeira, e nas festas de fim de ano, Natal e Ano Novo, em que as pessoas gostavam de envergar roupas novas e bem-passadas, especialmente os homens com suas roupas de linho, bem vincadas, as calças com o caimento que somente o linho era capaz de dar. Maria saía a fazer as entregas com as roupas dependuradas em cabides, engomadas com goma rala, feita à base de tapioca. As roupas eram mergulhadas na goma, postas para secar e, depois, iam ao ferro.
No Beco do Canto Escuro, ficava a casa de Maria Gorda, outra afamada engomadeira, cujas filhas eram tidas como filhas de Antônio Boa Vista, festeiro junino de tinir, mas casado com Dona Sinhá. No terreiro de sua casa, a fogueira queimava do dia 13 ao dia 29 de junho. Dizia-se que ele, à boquinha da noite do domingo, véspera da feira semanal da cidade, ia sorrateiramente à casa de Maria Gorda, para uma brincadeira e para deixar os caraminguás com que ajudar no de-comer das meninas. As duas meninas foram minhas colegas na escola da professora Lídia. A mais nova, gordinha como a mãe, tinha um ABC diferente dos demais: o dela, nas letras vogais, tinha, a mais, a letra “y”, que ela chamava de “pissilone”. Levava uns bolos de palmatória porque não acertava dizer “ípsilon”. Repetia e não acertava. Eu me compadecia dela, do seu choro incontido. Ainda hoje, quando ouço Luiz Gonzaga cantar “ABC do Sertão”, vem à lembrança a minha coleguinha, que chorava demasiadamente debaixo da palmatória. Aliás, famigerada palmatória, o suplício dos que teimavam em não desasnar e que servia para desabrochar a sanha de perversidade de alguns educadores, ou quase isso.
Maria Gorda buscou melhores dias no Rio de Janeiro, com suas filhinhas. Nunca mais se soube notícias delas. Oxalá, tenham encontrado uma melhor ventura.
Maria Benta mudou-se para o beco do açude, no sopé da ladeira do tanque. Tanque e açude fazem parte da mesma bacia hidrográfica, lado a lado, o tanque sangrando para o açude nas temporadas de muita chuva. Ali, ela continuou engomando. Aos poucos, porém, foi deixando de lado os afazeres do ferro a brasa, tormento das engomadeiras, para dedicar-se à venda de bebidas alcóolicas, montando o que se chamava de “cacete-armado”. Parece que se deu bem na nova empreitada. Ali morreu, muito idosa.
Outra destacada engomadeira foi Bebé, irmã de Rosinha, moradoras na Rua do Ouro, atual Rua Mal. Cândido Rondon, em frente à casa da minha tia Aurinha. Bebé era uma negra baixa, bem corpulenta, diferente de Rosinha, alta e esbelta. Ambas gostavam de contar lorotas e de soltar boas e sonoras gargalhadas. Tinham por mim uma grande afeição. Eram irmãs de Izaltina, mulher de Pedro, irmão de Chico Costa, dono da saboaria, nas proximidades da Cruz do Carira (lugar onde fora assassinado um soldado de polícia, natural da cidade de Carira), na descida do Beco de Tatá para o Brejo das Pedreiras. Chico Costa era o avô paterno do prefeito Paulo Garcia Vieira, um dos mais operosos administradores da minha terra (1973-1977), com quem eu iniciei a minha vida pública, em junho de 1973.
Bebé e Rosinha faleceram com muita idade. Ainda guardo em meus cadernos de anotações alguns ditos das duas irmãs, que também me contavam sobre fatos da política dorense das primeiras décadas do século XX.
As engomadeiras sofriam com os ferros a brasa e em brasa. Às vezes, os mesmos eram postos à janela, para que o vento, soprando e penetrando pelo orifício da parte traseira, avivasse as brasas. Outras vezes, as engomadeiras sacudiam os ferros, para lá e para cá, para que as brasas se livrassem das cinzas que as cobriam. O calor emanado dos ferros a brasa fazia o suor encharcar o corpo das engomadeiras, que, penosamente, assim trabalhavam para sobreviver.
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.