O cabo Aniceto e o cavalo do bandido :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal
Fitas velhas tremiam e chuviscavam. Outro tormento para os espectadores. Mais xingamentos. “Se for assim, quero meu dinheiro de volta”, vociferava Eládio, que costumava assistir ao filme mais de uma vez, para ficar, em voz alta, antecipando as cenas, na sessão seguinte. “Cale a boca, Eládio, seu fio de uma rampeira”. Às segundas-feiras, eram exibidas duas sessões, uma à trade e outra à noite.
Cinema. Diversão para toda a família. Américo de Joaninha não perdia uma segunda-feira, quando era dia de faroeste ou espadachim. Lá ia ele com Dora, a mulher, e uma récua de filhos. Outro que costuma ir com a mulher e os dois filhos era Edinaldo do finado Santo. Fechava a bodega, quando era um faroeste, especialmente se era com John Wayne. A garotada da minha idade invadia o cinema. Cine São José, na Praça do Comércio. Somente às segundas-feiras, eram exibidos o seriado e o jornal: Atlântida, Canal 100... Ah, o futebol e o roteiro musical do Canal 100! Quem poderá esquecer?
Numa segunda-feira, alvoroço. A mulher do cabo do destacamento policial da cidade saiu às pressas do cinema. Vociferando impropérios. Estava mais assanhada do que uma caixa inteira de marimbondos. Quem estava do assento onde ela estivera para trás, pôde, no escuro, distinguir que era ela, pelo volume do corpo. Cinéfila inveterada. Algo descompassado acontecera, para ela retirar-se daquele jeito, bufando como uma locomotiva maria-fumaça, que, em filmes do velho Oeste, os índios chamavam de cavalo-de-ferro.
Não demorou dez minutos, o cabo Aniceto adentrou na sala de espetáculos, portando um revólver na mão direita, e gritando, repetidamente: “Acenda a porra da luz”! As luzes foram acesas, mas a fita continuou a ser exibida. Atônitos, os espectadores voltaram-se para o cabo, que percorreu todo o corredor entre as duas fileiras de cadeiras fixas, perguntando: “Quem chamou a minha mulher de velha gorda”? Os olhos do cabo pareiam faiscar. Talvez um fio de baba escorresse no canto da boca.
Ante a fúria do cabo, ninguém se moveu, ninguém disse nada. Logo, porém, uma mocinha deu um chilique. Maria de Chico de Dió abriu o berreiro, quando o cabo endoidecido aproximou-se de onde ela estava. O cabo ordenou: “Bico calado”! De chofre, ele calou.
O filme exibido, colorido, em cinemascope, exigiu uma ampliação improvisada da tela. Dois lençóis brancos foram estendidos, um de cada lado. Era um bangue-bangue. O cabo tresloucado perguntou mais uma vez, quem teria cometido a desfeita contra a sua esposa, chamando-a de velha gorda. Ninguém, de novo, disse nada. Agonia.
O cabo andou pelo corredor, para lá e para cá. Ofegante. Bufando. Enraivecido. Nunca se ouviu dizer que o cabo Aniceto fosse aquele homem todo, que ali se mostrava. Porém, ofender a sua senhora lhe deixara envenenado. O ofensor carecia de uma lição. Além do despropósito da ofensa, o cabo era uma autoridade a ser respeitada. A mulher do cabo também era autoridade por osmose. As autoridades da cidade eram, pela ordem, na boca do povo, o juiz, o promotor, o padre, o prefeito e o delegado de polícia, no caso, o tenente João Canuto. Abaixo do tenente, o cabo, pois há quase um ano, não havia um sargento no destacamento policial.
Na tela, um cavalo branco em disparada, após o bandido ser alvejado pelo xerife. Naquele instante, Zé de Rochinha, marchante, levantou-se e disse: “Cabo, quem mexeu com a sua mulher foi o cavalo do bandido. Lá vai ele, correndo com medo de você”. O cabo Aniceto, cego de raiva, apontou a arma para a tela e disparou. O cavalo caiu, ao entrar num riacho. Fora de si, o cabo gritou: “Comigo é assim: na bala”. Deu meia-volta e retirou-se. Aplaudidíssimo.
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.