Aracaju (SE), 21 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 07/09/2024
Pub.: 09 de setembro de 2024

O Candidato Feiticeiro :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

O relógio da matriz estava pestes a badalar as doze pancadas da meia-noite. Rebuliço pras bandas do cemitério local, no beco de Sizino Bufa de Véio. Com pouco, uma pequena multidão fazia-se notar nas cercanias da morada dos defuntos da cidade. O carro da polícia abriu a sirene, para abrir passagem. Dele desceu o soldado Chico Brito, todo mal-amanhado, e o delegado, tenente Porfírio Leite, cuja barriga descia primeiro do que ele próprio. Barriga de besta melona, como diria Zefa de Tintino Três Pernas. 

“Desafasta, todo mundo”, foi gritando o delegado. “Desafasta!”. No portão de entrada, fechado, chave do cadeado na mão, estava o coveiro Antunes de Maria de Pedro da Guia. “O que se passa, coveiro Antunes?”, indagou a autoridade policial. “A coisa parece ser muito delicada, ‘seu’ delegado. Eu já tava dormitando, quando um sujeito que atende pelo nome de Zé Corninho gritou na minha calçada, que tinha gente fazendo feitiçaria no cemitério. Pulei da cama, vesti a roupa e pedi pro meu filho Titico dar aviso à polícia. O meu cemitério não é lugar pra feitiçaria. O senhor deve tomar as providências”. 

Portão aberto, o delegado e o coveiro, este de lanterna na mão, dirigiram-se ao lugar de onde alguns passantes tinham ouvido vozes e visto uma bruxuleante iluminação. Acuado, estava Valdomiro de Canuto do Brejo, candidato a vereador, na eleição que se realizaria dali a quinze dias. 

Em tempos idos, Marcolina de Robério dos Araçás fora flagrada com um amontoado de cacarecos, fitas roxas, velas pretas, um manto vermelho, umas imagens pequenas, que não eram de santos da Igreja e outros trens lá, cavoucando na sepultura de Mãe Doninha, uma velha ex-escrava, afamada mãe-de-santo. Marcolina era a mãe de Desidério Rocha, candidato a prefeito pela UDN, em 1958. À época, o delegado Mamede Coice de Jegue, botou Marcolina no xadrez até depois da eleição, que ocorreu sete dias após a prisão. Mas, valeu a pena. Desidério bateu Fernandinho de Zé Costela com doze votos na frente. Eleição apertada, mas garantida. 

Os passantes dessa noite pelo cemitério eram Valmir de Socorrinho e João do Belo Monte, eleitores de Maninho de Tibúrcio, candidato a prefeito contra Américo Pinheiro, que era o candidato a prefeito de Valdomiro de Canuto do Brejo, o candidato a vereador, que passaria a ser alcunhado pelo povo de “candidato feiticeiro”. Valmir e João bisbilhotaram por sobre o muro do cemitério e viram um vulto ajoelhado sobre uma tumba. Chamaram outros passantes, que chamaram outros tantos e mais outros foram chegando, até formar uma pequena multidão. Algumas pessoas subiram no muro. O vulto quis correr. Alguém gritou: “Pega o feiticeiro!”. Cinco ou seis pularam para dentro. Cercaram o vulto, que se protegia com uma capa. Descobriram-no. Era Valdomiro. Encurralam-no. Zé Corninho foi dar conta ao coveiro. 

Em direção ao furdunço, o delegado quase caiu no buraco de uma cova semiaberta pelas últimas chuvas. Lá fora, aumentava a multidão. O delegado e o coveiro encontraram Valdomiro assustado, com cinco ou seis sujeitos ao seu redor. Numa das mãos, ele tinha um terço. Dava pra ver. 

O delegado conhecia o candidato a vereador. “Então, ‘seu’ Valdomiro, o senhor quer se eleger com os votos dos defuntos? Veio incomodar quem não incomoda mais ninguém? O senhor veio recolheu os títulos eleitorais mortos, foi? Veio comprar os votos de quem não pode mais votar? O senhor não tem vergonha na cara? E esse mausoléu, por acaso, é de algum parente seu? O senhor é dado a feitiçarias? Eu não sabia. Perturbar o sossego dos defuntos é uma coisa muito séria. Pode até dar enquadramento como crime. Além do mais, o senhor me tirou do meu sono, quase nas pancadas da meia-noite. E eu que venho de umas noites sem dormir, sofrendo com o meu reumatismo. O senhor não consegue emprenhar as urnas e veio se valer da defuntação, hein, seu Valdomiro?”. 

O coveiro passou a lanterna ao derredor. Tudo parecia sem alteração. As covas rasas e os mausoléus no mais profundo silêncio. Nada mexido. Valdomiro, a muito custo, trêmulo, disse: “Seu delegado, eu tô aqui de penitência. Este é o mausoléu da minha finada mãe. Em sonho, por três noites, ela me pediu para rezar umas ave-marias aqui, na boca do túmulo, para o descanso de sua alma. Foi o que eu vim fazer”. Tomando a lanterna da mão do coveiro, o tenente alumiou o rosto de Valdomiro. Dos seus olhos verteram lágrimas. Logo, ouviu-se um gemido doloroso bem dentro do túmulo de Sá Doralice do finado Canuto do Brejo. O delegado e o coveiro arrepiaram-se. E todos que ali estavam tocaiando o candidato a vereador. Um gaiato, dos que ali estavam, exclamou: “A velha está pedindo pelo filho, ‘seu’ delegado. Com coisa do outro mundo não se brinca”.

Naquele comecinho de madrugada, o delegado deixou o dito pelo não dito. Acabou o alvoroço. E Valdomiro acabaria sendo o candidato a vereador mais votado naquela eleição. 

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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