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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 11 de outubro de 2015

Maria da Fila :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Reprodução internet - Foto ilustrativa

Reprodução internet - Foto ilustrativa

Vida miserável. Desde que o mundo era mundo. Mercadejar o corpo. Ainda havia quem as chamasse “mulheres de vida fácil”. Rampeiras. Mulheres de portas abertas. Assim o era desde antes de Madalena, a que enxugou com os próprios cabelos os pés santos do jovem Nazareno, que a todos acolheu, e que, ainda hoje, nem todos O compreendem. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Que pena!
Maria da Fila. Quando jovem, não chegava para quem queria. Carne fresca. Moscas varejeiras como urubus na carniça. Assim eram os homens, solteiros ou casados, na sem-vergonhice descarada que sempre assolou o lado masculino da humanidade. Maria era quase uma menina quando caiu na vida. Pobrezinha! Ouviu vãs promessas de um namorado. Casamento à vista. Sedução. Foi-se o favo de mel. Foi-se a honra, como, então, se dizia. Lágrimas em profusão. Um rio de lágrimas. Rio caudaloso. O pai a expulsou de casa. A mãe quase morreu de desgosto. Crime de sedução? Processo judicial? Não eram coisas para moças pobres, de ponta de rua, de subúrbio. Vida de pobre naqueles tempos valia menos do que uma casca de siri podre. Direitos? Só os ricos os tinham. Garantidos pelas leis. E, mais ainda, por quem as aplicava.  
A menina Maria apareceu, à noite, numa sexta-feira, na casa de luz vermelha acesa no beiral. Era a “casa de moças perdidas” de Marialva do finado Zé Costela. Casa afamada em toda a região. Ali, a menina ficaria por uns dez meses, até estabelecer-se por conta própria. Arranchada no beco do matadouro, numa casinha caiada, portas na cor azul, barrada a tabatinga, sala, quarto e cozinha. Um quintal sombreado por algumas árvores frutíferas. Ali estava o seu ninho. Comprado a prestação à viúva de Arnaldo do Gravatá, há dois anos e meses. Pagou o preço acertado em cinco vezes. Os ganhos eram bons. Ela continuava o xodó dos homens que compravam momentos de amor fugaz. Muitos torraram os cobres com ela. Porém, ela já tinha em vista outra casa, no Campo Velho. Estava nos acertos com o dono. Casa maior. Melhor.  
Numa boquinha da noite, um sujeito desconhecido bateu à sua porta. Estava ferido. Fora roubado. Espancado. Esvaia-se em sangue. Maria da Fila estava sozinha. Abriu a porta. Assustou-se. Fechou-a em seguida. Não haveria de querer entrar em encrenca de ninguém. Lembrou-se do que lhe dizia sua avó, que Deus a tivesse: “Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Mas o homem continuou a bater em sua porta. E a gemer cada vez mais alto. A pedir socorro. Por uns instantes mais, ela não lhe deu ouvidos. Que ele fosse bater noutra porta. Que fosse à polícia, se pudesse. Não o poderia acolher naquelas condições. Ela era jovem e medrosa. Não queria envolver-se. 
Era o mês de junho. Inverno chuvoso. Começou a cair um aguaceiro. O homem continuava ali. Debaixo da chuva. Enfim, ela compadeceu-se. Antes de abrir a porta, pediu a proteção da Virgem, cuja imagem ela guardava num pequeno nicho colado na parede da sala, no lado do oitão esquerdo. Acolheu. Ele estava ferido na cabeça. Um corte pouco profundo no lado direito, mas sangrava muito. O rosto coberto de sangue. Ela o levou para a cama. Limpou as feridas com água morna. Fez um preparado com pó de café e folhas de catinga-de-mulata, que estancavam hemorragias. Rasgou uma anágua nova de cambraia para fazer o curativo. O sangue ainda escorria, mas haveria de estancar. Ela fez uma promessa apressada. Se o sangue estancasse, ela acompanharia a procissão da Virgem, em setembro, de pés descalços e beijaria o seu manto azul.
A chuva serenou. Logo depois, alguém bateu à porta. Era um costumeiro freguês. Ela atendeu, mas recusou prestar-lhe os serviços que ele procurava. Explicou-lhe o sucedido. Dois outros foram dispensados. O desconhecido adormeceu. O sangue estancara, mas a cabeça estava muito inchada. Maria da Fila rezou uns quantos Pai Nosso e umas tantas Ave Maria. Não sabia por que acolhera aquele homem. Talvez não o devesse. Todavia, o que estava feito, estava feito. Ela forrou o chão com umas cobertas de saco de aniagem, quentinhas. Ali dormiu. 
O dia amanheceu chuvoso. Ao despertar, ela levantou-se apressada. O homem continuava dormindo. Ela o examinou. O sangue estancara. A cabeça ainda estava inflamada. O pano do curativo manchado de vermelho. Ele abriu os olhos e disse: “Obrigado, moça!”. Ele contou o que lhe acontecera. Era de uma cidade próxima. Estava a cavalo e de passagem. Os dois ladrões levaram o cavalo e os pertences. Ela disse que ele deveria ir à Polícia. Ele respondeu que faria isso, logo mais.

Ela foi à cozinha. Fez um ligeiro asseio. Tomou da massa de milho e do sal. Usou um caneco de água. Preparou a massa. Pôs água no cuscuzeiro. Deixou a massa dormitando. Tirou de uma panela que estava no canto do fogão um punhado de ouricuri, que ali se chamava dicuri. Quebrou-os. Cortou umas fatias bem finas de queijo de coalho. Mexeu novamente a massa úmida. Mais uns pingos de água. Colocou uma camada da massa no cuscuzeiro. Umas fatias de queijo. Uma camada de massa. Uma porção de dicuri. Uma camada de massa. Umas fatias de queijo. Uma camada de massa. Uma porção de dicuri. E a última camada de massa. Cuscuz para dois. Dali a pouco, o cheiro do cuscuz e do café de coador rescendiam na cozinha acanhada.
Maria da Fila estrelou uns ovos de galinha de capoeira. Gemas amarelinhas. Ao ponto. O homem levantou-se ainda meio zonzo. Os dois comeram em silêncio. Depois, ele elogiou o café da manhã. Jamais comera tão delicioso cuscuz. Cuscuz cozido com dicuri e queijo de coalho. Era para não esquecer. Ele ainda estava um pouco fraco. Demorou-se até às dez horas. Preparou-se para ir embora. Do fundo da bota do pé direito ele tirou um pouco de dinheiro amassado. Contou algumas notas e fez menção de entregar a ela. Ela recusou, apesar das insistências dele. Ela só aceitou o “muito obrigado” e o “Deus lhe pague, moça!”. Foi-se embora. Ela não mais o viu.

No fim de agosto, Maria da Fila mudou-se para a casa comprada no Campo Velho. Em setembro, ela foi cumprir a promessa feita a favor do homem ensanguentado a quem dera socorro. Foi à procissão da Virgem. O carro que conduzia a imagem da Virgem estava muito bonito. Homens o conduziam. Padres, autoridades e beatas o cercavam. O povão atrás. Como sempre. A procissão arrastou-se pelas principais ruas da cidade. Banda de música, cantorias e foguetório. Maria da Fila estava descalça, como prometido, lá no fim do acompanhamento. Ao chegar à igreja e após a benção do Santíssimo, ela aproximou-se da imagem da Virgem, para beijar o seu manto azul. Uma beata a reconheceu. E gritou histérica: “Sai daqui sua puta safada! Não toque suas mãos sujas no manto sagrado da Virgem”. Outras beatas achegaram-se e também emitiram impropérios contra ela. Maria assustou-se. Encolheu-se. As beatas a queriam surrar. De repente, um homem pôs-se entre Maria e as beatas. Era o ensanguentado que fora cuidado por ela. Ele dirigiu-se às beatas furiosas: “Esta mulher cuidou de mim quando eu, de passagem por esta cidade, fui assaltado. Devo a ela a minha saúde e, quem sabe, a minha vida. Vocês, mulheres devotas, conhecem os ensinamentos de Jesus? Por acaso, já leram a Bíblia? Espero que as senhoras não sejam como sepulcros caiados”. As beatas em fúria aquietaram-se e calaram-se. Maria, trêmula, foi amparada pelo homem. Era o pai do novo padre da cidade, que ali chegara há poucas semanas. Ele fora à antiga casa de Maria, mas não a encontrou. Porém, ali estavam eles, diante da imagem da Virgem, a Mãe do Nazareno. Daquele que a todos acolheu. E acolhe.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 11 de outubro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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