Aracaju (SE), 11 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 05/11/2024
Pub.: 06 de novembro de 2024

Carro enguiçado :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*
 
José Lima Santana (Imagem: Arquivo Pessoal/José Lima Santana)
Ventinho descarado aquele da manhã de terça-feira, mês de maio, comecinho de inverno no Tabuleiro dos Afonsos. Titela Inchada correu os olhos em derredor de si. Galhos de árvores em dança alvoroçada, a brisa fazendo das suas. Nos ouvidos de Titela, o ventinho descarado soprou uma musiquinha brejeira. Talvez tenha lhe dito alguma coisa, que, pela idade, ele não conseguiu decifrar. Ventinho tangedor de novidades, de incompreendidas falações. 
 
O velho de brancos cabelos, de muitas pelejas nos tabuleiros e nos sertões, de muito andejar à cata de votos para os figurões da cidade, nos tempos de eleições, ainda tinha tino para as empreitadas eleitorais. Votar, precisa mais não. Passava dos setenta. Mas, gostava da folia, dos chamegos no meio dos homens de tutano nos ossos, dos quebra-quebras dos tempos passados, quando as armas eram necessárias para garantir um pleito, assegurar a vitória de um candidato. Aqueles tempos se foram. Agora, era tudo na maciota, embora o dinheiro ainda valendo para encher as urnas. 
 
O céu estava nublado. Nuvens carregadas. Inverno a bom tempo e a bom gosto. As roças estavam sendo plantadas há dias. A bem dizer, desde o mês de março que se semeava o chamado “milho de São José”. Milho caboclo, de espiga pequena, mas carregadinha de dar gosto. Milho adocicado, bom para um-tudo. O ventinho descarado continuava com “mi-mi-mi” no pé do ouvido de Titela Inchada, apelido de João Leme Peixoto, um pai d’égua duas vezes viúvo e três vezes casado, com mais de vinte filhos criados sob o seu comando e voz. 
 
A luz da manhã, enfraquecida pelas nuvens de chumbo, não lhe castigava os olhos, como nas manhãs de sol a pino. De novo, correu os olhos ao derredor. Esperava uma posição de ‘seu’ Francisco Leitão, chefe político de Campo Belo, há quatro décadas mandando na política do lugar, ora a favor, ora contra o governo, o do Estado e o de lá de cima. Perder eleição municipal, ele só perdeu duas vezes. Também, os candidatos eram meia-boca. Rodas presas. Zeca Brito da farmácia e Ludugero de Quincas Beija-flor. Duas carniças. Cheios da grana, mas faltos de gente. Não podiam se eleger, nem com todo o esforço de ‘seu’ Francisco Leitão, este, sim, dado ao povo. A sua casa era a casa de todo mundo. 
 
Já, já era a hora de os candidatos se lançarem ou serem lançados. E deram de aparecer uns meninos, gente escolada, nos livros e na tabuada, uns até vindos da capital com diploma grande, de médico e advogado, de conversa com o povo, amiudados nas palestras, no convívio, no chega pra cá. Ventos novos querendo soprar em Campo Belo. ‘Seu’ Francisco Leitão que se segurasse. A política poderia escapar de suas mãos e cair de graça nas mãos daquela garotada. “Quem for besta, que beba gás”, pensou Titela Inchada. 
 
A musiquinha do vento continuou a fazer vibrar os tímpanos do velho Titela. Musiquinha novidadeira, que dizia algo não bem compreensível. Aquele assobiozinho ventoso estaria querendo dizer algo? Deveras que sim. Porém, os cabelos brancos de Titela não compreendiam. Os tempos eram tão novos, que até a musiquinha do vento soava de modo diferente, novidadeira. Titela fechou os olhos e deixou-se enternecer por aquele ventinho descarado a soprar para dentro de suas “oiças”.
 
A manhã se fora. O meio-dia também. A tarde veio com chuva. Primeiro, uma pancada d’água forte, ligeira, fazendo pequenas corredeiras na estrada. Depois, uns chuviscos intermitentes. As horas perderam-se com a chuva. Seriam quatro ou cinco horas. No alpendre da casa, Titela Inchada, no seu modo rude de bisavô e de pai, dava entretenimento ao filho mais novo, de cinco anos. 
 
De repente, o ronco de um carro vindo estrada afora, espanando lama e água. De novo, o ventinho soprando música. “Boa tarde, compadre João!’. Era ‘seu’ Francisco Leitão, o chefe político. “Boa tarde, meu compadre”, respondeu Titela Inchada. 
 
Ali estava a novidade, que o ventinho descarado tanto tentou contar a Titela. O partido já tinha candidato a prefeito. Era Ernesto de Madalena, concunhado de ‘seu’ Francisco. Ernesto era dono do Armazém Preço Baixo, o mais sortido de toda a região do Tabuleiro. Tinha filiais em Brejo das Almas e Pau D’Arco. Comerciante próspero. Agiota. Não vendia fiado a ninguém. 
 
Ao ouvir o nome do candidato, Titela Inchada olhou bem nos olhos do compadre, que estava sentado à sua frente, e disparou: “Esse sujeito é como carro enguiçado, não sai do lugar”. A eleição veio e Ernesto de Madalena perdeu para o médico recém-diplomado.
 
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL, da ABLAC e do IHGSE.
 


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