O Padre e os Carurus :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
O caruru de Fátima de Sá Filomena do finado Zé Bacorinho era festejado em toda a cidade. Fátima tinha terreiro de toré, de caboclos e caboclas, de jurema e juremê. Mas, quem era de jurema e juremê também andava na igreja. E Fátima era frequente na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, para desgosto de algumas beatas, mas não do padre João Vieira, tolerante pregador da salvação de todos pela misericórdia de Deus. “E quem é de terreiro se salva, padre? O senhor endoideceu, foi?”, indagava Martinha de João Canuto, este devoto de São Jorge Guerreiro e raparigueiro maior da cidade. Ora, para João Canuto, adúltero, haveria salvação, mas não para Fátima do toré? Mundo torto, gente torta.
Setembro. Noite de Cosme e Damião. No outro lado da cidade, distante do terreiro de Fátima, também tinha um caruru afamado. Era o de Zildinha de Pedro Bolo Fofo, dono da Padaria Eldorado. Zildinha era devota dos dois santos católicos gêmeos. Acreditava-se que a morte de ambos, que seriam médicos, ocorreu por decapitação em 27 de setembro, entre 287 e 303 d.C. Foram mártires como o pai e os três irmãos, na época das perseguições do imperador Diocleciano, que governou de 284 a 305 d.C. Acta e Passio seriam os verdadeiros nomes dos gêmeos. Era o que explicava o padre João Vieira.
No sincretismo religioso afro-brasileiro, que também passou para o toré, segundo a explicação de Fátima, dava-se o nome de Ibeji (também conhecido como Yori) ao orixá jeje-nagô dos gêmeos. Ibeji é a junção dos termos iorubas ibi, que significa nascimento, e eji, que quer dizer dois.
Nada dessas explicações interessava aos comedores de caruru, de Fátima ou de Zildinha. O importante era degustar o delicioso caruru da dona do terreiro ou da devota católica. E muita gente batia à porta de ambas, ano após ano. E todos eram bem recebidos pelas duas.
As duas casas do caruru fervilharam de gente. Fartura em ambas, como sempre. Foguetório lá e cá, espantando os pets. Uma ação a ser combatida. Todavia, era animação. Era fervor. Era festa de Cosme e Damião, de um lado, e de Ibeji, do outro.
Após a missa noturna, o padre João Vieira foi ter à casa de Zildinha, onde foi recebido pelo dono da padaria, marido da festeira. Bebericou uma taça de vinho tinto de qualidade duvidosa. Fez beiço. Fazer o quê? Era o que tinha a ser oferecido pelo produtor de pães e similares. Depois, bateu para o bucho duas tigelas de caruru. Hum! Divino. E ainda levou para casa um pequeno recipiente com a iguaria. A bem dizer, o padre comia como um bispo.
Ao chegar em casa, o padre recebeu a ligeira visita de Amelinha, sua cozinheira, que vinha da casa de Fátima, de jurema e juremê. Mais uma porção de caruru, a pedido dele próprio, que queria, pela primeira vez, comparar os dois carurus. O padre estava feito naquela noite.
Antes de dormir, o padre bateu o caruru de Zildinha e o de Fátima. Sabia que precisava conter a gula, pecado venial que o perseguia desde criança. A hipertensão e o diabetes faziam morada em seu corpo avantajado. Todo cuidado era pouco, porém ele adiava qualquer providência salutar a ser tomada.
A azia não deixou o padre comilão dormir direito. Acordou, mal humorado, às duas horas da madrugada, para fazer um chá de camomila, gengibre e hortelã. Voltou para a cama. Gemeu e bufou. Às cinco horas, o mundo do padre João Vieira desandou. Ele foi ao trono uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Desmanchava-se em cocô.
Quando chegou às seis horas para o trabalho, ao tomar conhecimento da situação do padre, Amelinha penitenciou-se, pois deu de suspeitar que o caruru de Fátima foi a causa do desmantelo do padre. Castigo, só podia ser. Um padre comer caruru de terreiro de toré não era prática que convinha. Linguaruda, Amelinha fuxicou com Zélia de Ananias Perna Torta, segredando-lhe a situação do padre. A partir de Zélia, só Deus e o mundo ficaram sabendo da caganeira do padre. Coitado! Caiu na boca do povo. Tornou-se motivo de gozação. A considerar a suspeita infundada de Amelinha, Ibeji dera um drible em Cosme e Damião. Nada a ver, claro. O padre guloso tinha se refestelado além da conta.
*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.