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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 19 de outubro de 2015

A gaveta da bodega :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal

O governo federal queda-se perdido. Ou mais ou menos perdido. Politicamente. Administrativamente. Moralmente, se perdido não estiver, ao menos se sente acossado pela imoralidade de apadrinhados de ontem. E, talvez, de hoje também? Sabe-se lá! Os aloprados estão começando a mostrar a cara. Caem as máscaras. É preciso lembrar Cazuza, genial compositor, com suas músicas de letras mordazes, porém, tão verdadeiras, e que, em parceria com George Israel e Nilo Roméro, cantou: “Brasil, mostra tua cara...”. Diga-nos, “meu Brasil brasileiro”, como o disse Ari Barroso, “o nome do teu sócio”, como o disseram Cazuza e os parceiros. Sócio? Trata-se de uma cambada deles. Ora, eles já estão aparecendo. Estão esperneando. Imaginemos os que ainda mostrarão as caras sujas, lambuzadas de óleo bruto ou sei lá do quê.

Muito bem. Eu não quero escrever sobre o governo. Não me interessa falar, por exemplo, na senhora presidente, que, recentemente, descobriu (eureka!) que o mundo ainda não desenvolveu uma tecnologia que permita “estocar vento”. Essa é da braba. E não me venham para cá com a questão do “ar líquido”, que os ingleses estão estudando, e que é outra coisa, bem diferente de estocar vento. Porém, eu discordo da excelentíssima. Nonô de Mané Pelôco estoca vento há um magote de anos. Tecnologia autenticamente sergipana. Não sei bem como é que ele consegue. Só sei que consegue. Especialmente, quando ele bate para o bucho um sarapatel apimentado, uma baita feijoada, um cozido porreta com osso de correr. Ah, aquele tutano, aquela graxa amarela do osso, escorrendo após umas boas batidas na “cabeça”...  Do osso, claro! A graxa caindo no prato, sobre o pirão...! É de comer e lamber os beiços. Para quem gosta, é certo. Eu não gosto. Do cozido, sim. Mas, da graxa do osso de correr, não. Na verdade, seria osso de escorrer. Mas o povo diz de correr. Pronto.

O certo é que Nonô estoca vento. Ele consegue guardar suas ventosidades e solta-as quando bem quer, preferencialmente diante da velha Felismina, sua vizinha, que diz mil impropérios enquanto ele despeja pelo largo cano de descarga (ele deve pesar uns 120 quilos) dezenas de flatulências sequenciais, rindo às escâncaras, como um moleque de bagaceira. Um horror! Quando alguém indaga: “Ô Nonô, cadê as bufas?”, ele responde: “Estão estocadas”. Sujeito mais descarado. Nonô deveria ser contratado pelo Planalto para ensinar ao Brasil como estocar vento. É o que nos falta. Por ora.

Estamos num embeleco desgraçado. A sorte é que o país se arrasta, mas segue em frente. Sabe Deus como! A economia está em frangalhos nalguns setores. O que faltou, economicamente falando, da parte do governo? Cuidar da gaveta da bodega. Aí, mais uma vez, o problema é com Nonô. Sim, porque o velho Chico Pelôco, avô de Nonô, era bodegueiro. E Nonô, quando menino, ajudava o velho no balcão, enchendo garrafas de querosene, enrolando sabão barato em velhas folhas de jornais, botando pingas para os “bêbinhos” de pé de balcão e tudo o mais.  E a gaveta? Eis o nó da questão. Chico Pelôco não desviava os olhos da gaveta, onde eram guardadas as notas sebentas e as nicas. Ninguém metia a mão na gaveta, a não ser o dono do negócio. Nem Sá Dulcina, mulher do velho Pelôco. Se ele precisasse ausentar-se da bodega, limpava a gaveta. Do que entrasse em sua ausência, Sá Dulcina não botava a mão em nada, a não ser para guardar ou passar troco. Mulher direita estava ali. E fiel em tudo. Contudo, Nonô zelava pelo conteúdo da gaveta. Não era que ele desconfiasse da mulher. Não! Era apenas o jeito dele administrar o negócio. “O olho do dono é que engorda o boi”. A não ser que o dono seja “zanôio”, como diria o próprio Chico Pelôco.

Quem tem o que é seu, zela. Era o que fazia Chico Peloco. A gaveta da bodega era, por assim dizer, a sua vida. Ali eram depositados os valores das vendas. Dali saía o pagamento aos fornecedores. Pagamento no dia aprazado. Nunca ele pagou a ninguém fora do prazo. Dali saia o lucrinho dele. Era dali que ele vivia. Foi com o lucrinho bem cuidado que ele criou os filhos, os doze filhos. Ninguém passou necessidades. Porém, ninguém teve regalias. Se o dono do negócio não tivesse cuidado da gaveta, a casa teria desmoronado. Chico Pelôco gastava o que era preciso. Tudo no contado. Sem desperdícios. Sem desvios. E sem aumentar os preços fora dos limites.

Eu não queria falar no governo, mas não tenho como. De leve. Muito de leve. O governo deixou de cuidar a contento da gaveta da bodega. Gastou o que não podia. Pedalou à vontade. Lascou-se e está lascando com todo mundo. Menos, obviamente, com aquela parcela diminuta que sempre ganha. Essa parcela ganha cada vez mais e é cada vez menor no conjunto da população. Isso, todavia, não é exclusividade do atual governo. O país já passou por fatos semelhantes. Nem todo mundo soube zelar pela gaveta da bodega. E assim continua. Que triste sina!

De qualquer forma, eu repito: não quero falar no governo. Não em demasia. Afinal, eu não sou analista político, nem econômico. O que sei eu sobre política? Nada. O quanto entendo de economia? Zero. Eu sou apenas um escrivinhador que gosta de tentar divertir quem se atreve a ler meus insossos escritos. Quem não tem juízo e lê o que eu publico no jornal, nos sites, no facebook. Quanta gente de coragem, meu Deus!

A gaveta da bodega. Eis a questão. Nonô de Mané Pelôco, neto do velho Chico Pelôco arranjou um jeito de burlar a vigilância do avô. O balcão da bodega era de madeira bruta e mal lavrada. A gaveta encaixada que estava na peça do balcão, era da mesma madeira e da mesma feitura. Tinha uma emenda no fundo, que era composto por duas tiras de madeira. Um erro. Sabia-se lá porque, mas Chico Pelôco parecia nunca ter dado conta do risco que poderia correr. Na emenda, uma fresta. E foi por ali que, um dia, e só uma vezinha, Nonô conseguiu num momento de distração do avô, que conversava folgadamente com uns três ou quatro fregueses, uns “bêbinhos”, conversadores e cuspentos, retirar com um anzol bem fino, uma nota de cinco cruzeiros, daquela que estampava a figura bigoduda do Barão do Rio Branco. Era para comprar algum brinquedo na casa comercial “A Vencedora”, de “seu” Humberto Azevedo Andrade, na Praça da Matriz.

Ao chegar à bodega com o brinquedo, Chico Pelôco indagou onde Nonô arranjara o dinheiro para a compra. Nonô titubeou, foi para lá e veio para cá, mas acabou dando o serviço. Levou uma pisa porque fez o que fez. Levou outra pisa para saber que aquilo não deveria ser feito. E levou uma terceira pisa para que nunca mais fizesse outro malfeito daquele. Pisas reprováveis. Foi então que Chico Pelôco mandou fazer outra gaveta, fornida, sem fresta e com fechadura, coisa que a outra não tinha. Ou seja, cuidou de vez da guarda da gaveta da bodega. Ainda hoje, Nonô lembra as três pisas. E continua estocando vento, para o desespero da velha Felismina, que, aos 90 anos, teima em não bater a caçoleta. Estocar vento para ele virou um hábito nefasto. Quem sabe, agora, se ele não ganha um dinheirão ensinando como fazer a estocagem? Puxa!

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 18 de outubro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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