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Aracaju (SE), 27 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 29 de maio de 2016

Bartolomeu e a cigana :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Jos Lima Santana  - Arquivo Pessoal

Jos Lima Santana - Arquivo Pessoal

Bartolomeu. “Seu” Bartô. Da família dos Peixoto. Gente esparramada por várias áreas da vida social e econômica. Era um homem de pouca ou, talvez, nenhuma instrução escolar, porém, de dilatado discernimento. Entendia de um magote de coisas. Cioso. Sestreiro. Seguro. Não dizia um “sim” ou um “não” sem, antes, estar ciente das consequências. Por isso mesmo, ele pouco dizia “sim”. Mas, também, quando o dizia, era como um tiro certeiro. Não tinha volta. O difícil mesmo era o “sim” ter saída.
“Seu” Bartô era homem da roça, da coivara, do eito. Plantador de milho e feijão. E de mais alguma valia no ramo dos legumes e das verduras. Criava também um gadinho manso. Família grande. Filhos trabalhando desde pequenos. “O trabalho é o melhor chamego que o homem pode ter na vida, igual a uma mulher direita”, dizia ele. Filho de “seu” Bartô Peixoto fazia-se homem ainda menino. Na força para o trabalho e no caráter bem forjado. Na sua casa, ninguém era besta fazer xixi fora do caco.
Numa sexta-feira, “seu” Bartô foi à cidade. Precisava de sementes. O inverno estava quase às portas. Era necessário prevenir-se. Passando pela Praça da Matriz de Santo Antônio, eis que ele deu de cara com a cara de uma cigana. Roupa vistosa, muitos adereços, a voz inconfundível desse tipo de gente, desprezada por muitos, mas merecedora de respeito. Afinal, todo ser humano é digno de acolhimento. Ao deparar-se com o patriarca da Peixotada, a cigana para ele se dirigiu: “Ganjão, o senhor não quer que eu leia a sua mão? Tenho coisas boas para lhe revelar”. Ao que o velho Bartolomeu respondeu de prontidão: “Ora, num tem nada escrito na minha mão. Nem um papelzinho de bilhete. A senhora vai ler o quê?”. A cigana insistiu, já tentando pegar na mão dele: “Ler a sua boa dita, o seu futuro. Mas, se quiser, eu posso ler o passado também. A minha avó era uma cigana do Egito. Aprendi com ela. Posso revelar tudo para o senhor”.
“Seu” Bartô era um sujeito despachado, mas educado. Balançou a cabeça, esboçou um sorriso que quase não saiu do canto direito dos lábios. Naquele instante, passou por eles o velho Bambá, como era apelidado o seu tio Fulgêncio Peixoto, carregando na cacunda quase 90 anos de idade. “Abença, tio Fulgêncio!”. O tio respondeu com o vozeirão ainda firme: “Deus te abençoe, Bartô. Cuidado! Se tu viuvar, a cigana te carrega!”. E tio Fulgêncio saiu rindo, lascando uma gostosa gaitada como era de seu feitio. A cigana insistiu para ler a mão de “seu” Bartô. “Não me diga que o ganjão está com medo de saber o futuro, ou está com medo da revelação do passado”. E ele: “Dona cigana, não há nada neste mundo que me meta medo, a não ser os castigos de Deus, se um dia eu cometer um pecado cabeludo, dos bem cabeludões, e Ele quiser me chamar na chincha”.
Ali por perto, outras três ciganas liam mãos de três jovens mulheres. Uma delas ria a cada revelação da cigana. A cigana de “seu” Bartô deveria ter uns trinta e tantos anos. Era uma mulher bonita, olhos verdes, muito verdes, cabelos castanhos escuros, roupa limpa, vistosa, como são as roupas das ciganas, via de regras. Insiste daqui, insiste dali, eis que a cigana conseguiu tomar em sua mão a mão direita de “seu” Bartô. “Vejo muitas coisas boas em sua mão, ganjão. Vejo que tem uma mulher e muitos filhos. Tem casa e posses. É um homem precavido. Gosta de tudo muito certo. Não é dado a vadiagens. Trabalha muito. Vai ter vida muito longa. Veja a linha do meio do “M” como sobe e desce muito. Sinal de vida prolongada”. Por ali, naquela horinha mesma, estava passando um dos filhos de “seu” Bartô, que tinha a pretensão de ser padre. “Pai, o senhor, agora, acredita em palavra de cigana?”. O filho sabia muito bem que o pai não dava fiança a coisas como ler a sorte, pragas e toda a coisarada do gênero. Porém, “seu” Bartô grunhiu: “Siga seu caminho, moleque!”. E o rapazola seguiu em frente, para, lá adiante, soltar uma boa risada. Não teria coragem para rir, naquele caso, diante do pai. Seria um deboche. “Seu” Bartô não criava filhos para debochar dele, nem mesmo numa coisinha inocente como a leitura da mão por uma cigana bonita de olhos verdes, muito verdes.
A cigana disse, ainda, um monte de coisas. “Seu” Bartô, logo, logo, haveria de ganhar um bom dinheiro. Seria uma bolada e tanto. Era coisa de botija. Coisa grande. A vida dele mudaria da água para o vinho. Os filhos lhe dariam muito gosto. E muitos netos. A vida dele seria um mar de rosas.
As outras ciganas acercaram-se da companheira. Contavam o que haviam apurado em pouco mais de uma hora, desde que chegaram à Praça da Matriz de Santo Antônio, e um pouco antes de “seu” Bartô ali chegar. A féria não teria sido ruim. O dia parecia prometer.
Depois de muito dizer, a cigana, olhando como se tentasse enxergar algo muito miúdo, do tipo microscópico, no centro da palma da mão de “seu” Bartô, disse: “Estou vendo que o senhor vai me dar uma boa nota de dinheiro. Está escrito bem aqui. Uma nota graúda”. Ela o disse, tocando o seu dedo indicador onde as duas linhas se cruzavam para formar o “M” de mãe na mão de “seu” Bartô. E foi, então, que puxando a mão devagarzinho, “seu” Bartô disse: “Dona cigana, eu num sei se a senhora disse coisas certas ou não a meu respeito, mas, de uma coisa eu tenho certeza: essa história de eu lhe dar dinheiro num tá escrita em minha mão, não. Disso eu tenho certeza”.
“Seu” Bartô se foi e a cigana ficou praguejando contra ele.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 29 de maio de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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