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Aracaju (SE), 27 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 29 de junho de 2016

O padre, o bispo e a cachorrinha defunta :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Dona Mina. De batismo, Maria Felismina. Na vida civil, Maria Felismina do Amaral e Souza. Viúva do fazendeiro e comerciante José Vicente de Lima e Souza. O casal não teve filhos. José Vicente morreu apenas cinco anos após levar Maria Felismina ao altar. Foram assistidos na celebração matrimonial pelo Padre Joca Lisboa, um sacerdote respeitado no Cabido e nas redondezas da sua Freguesia. Homem bom, destemido. Orador sacro afamado. Esteve para ser Bispo por duas vezes, mas não aceitou. “Nasci para ser padre. Nada mais”, ele costumava dizer. Dona Mina não era apenas uma paroquiana. Era amiga íntima do Padre. Acudia-o em muitas necessidades da Paróquia. Era endinheirada. O finado marido deixara-lhe comércio, terras e muitos patacões no cofre. “A velha bruaca nada em dinheiro”, diziam as pessoas de língua solta. E, a bem da verdade, tinham razão. Endinheirada, sentia-se a dona da Igreja, da cidade e do mundo. Para muita gente, o dinheiro era tudo.
A viúva morava sozinha. Companhias, desde a morte do marido, só conhecera duas: o cachorro Tupã, que morreu de velhice, e a cadelinha Fifi, última companheira, que, naquela quinta-feira da Semana Santa, fora atropelada por um caminhão. Uma tristeza para a dona, que contava com oitenta anos de idade. Fifi agonizou uma tarde inteira. E, afinal, morreu à boquinha da noite.
Naquele tempo, o cemitério da cidade era paroquial. Dona Mina fora à casa do padre, a fim de acertar o enterro da cadela Fifi no cemitério da Paróquia. O padre estremeceu na rede, onde tirava um cochilo, diante do pedido, ou melhor, da intimação de Dona Mina, a fim de enterrar a cadelinha no cemitério local. Todavia, apesar do estremecimento diante da surpresa, o padre Joca Lisboa tentou convencer Dona Mina de que um cão não poderia ser enterrado no campo santo, reservado exclusivamente às pessoas. A viúva saltou dos tamancos, rodou a baiana, armou o maior barraco. Como o padre se atrevia a menosprezar a sua dor, a desfazer da sua cachorrinha Fifi? Quem ele pensava que era? Ora, não passava de um padreco que comia na sua mão. Nada mais, sem tirar nem pôr. Um padre metido a santo era o que ele era. Apenas metido. Ele haveria de ver com quantos paus se fazia uma cangalha.
Dona Mina arvorou-se no direito de denunciar o padre ao bispo. Haveria de ir à capital, a fim de peitar o padre, denunciando-o. Amigo? Não, ele não era e nunca mais o seria. E assim mesmo ele o fez. De madrugadinha, ela tomou a Marinetti de Pedro e aboletou-se para a capital. Lá chegando, tomou o rumo da Cúria Diocesana. O padre haveria de ver quem era Maria Felismina do Amaral e Souza. Então, o que ele comia não vinha, em grande parte, da sua gaveta? “Bicho mais mal agradecido!” – vociferava ela de si para si mesma. “Anos e anos de amizade que ele jogara no lixo!”. Na Cúria, ela fora informada de que o bispo estava viajando para as bandas do Sul e somente regressaria dentro de quinze dias. A cadelinha Fifi não haveria de aguardar o retorno do bispo. O padre Macedinho, chanceler da Cúria Diocesana, aconselhou Dona Mina a voltar para casa, enterrar a cadela num lugar no qual não fosse despertada nenhuma polêmica.
Para Dona Mina, o bispo estaria escondido dentro de casa com medo da sua língua. Nas poucas visitas pastorais que ele fizera à cidade com uma comitiva de padres e seminaristas, onde todos almoçaram e jantaram? Na casa dela. Ela não estava cobrando nada, mas seria demais uma pequena retribuição? Ela chorou como uma desvalida, na calçada da Cúria. Fora menosprezada pelo bispo. E olhem que ela ainda ajudara na compra das alfaias e dos bancos novos da Catedral, há uns dez anos. Meteu a mão na bolsa com gosto, numa das visitas pastorais do bispo. E o que ganhou? O menosprezo do bispo, escondido nalgum armário. Assim pensando, ainda mais ela chorou. Queria, por entender ser de direito, enterrar a sua cadelinha no cemitério, como se fosse um ser humano. Se de direito não o era, de fato era sim. Aliás, Fifi era mais humana do que muita gente. Companheira fiel, um encanto de cadela. Atropelada, enfim, por um caminhão, bem pertinho de casa. Os bichos tinham alma? Decerto que tinham. Ao menos os bichos de estimação. Ela assim o entendia. Fifi, então, era merecedora de ser enterrada no cemitério paroquial? Decerto que sim.
Naquela manhã, Dona Mina sentiu-se desiludida com relação à Igreja. O padre era a Igreja. Mas, não era a Igreja de Jesus. Era outra Igreja. Não era a Igreja do amor de Deus que, na essência, era totalmente amor, como disse São João no seu precioso Evangelho. O bispo era do mesmo balaio do padre. Sem tirar nem pôr. Como podiam negar o enterro a uma pobre cadelinha? Ela tentou levantar algumas beatas contra o padre, contudo, o velho pároco era por demais querido na comunidade e tão somente fazia cumprir um preceito racional. Enterrar animais de estimação como se fossem pessoas? Estas foram criadas à imagem e à semelhança de Deus. Receberam o sopro do Espírito. E os animais irracionais, por mais de estimação eles o fossem, o que seriam de fato? Nada, além de animais. O padre tinha, sim, plena razão. E o bispo estava, sim, viajando. E não haveria de dar guarida a tão absurda pretensão.
Dona Mina voltou para a cidade, no começo da tarde e ainda desolada. Porém, disposta a não atirar o corpo de Fifi aos bicos dos urubus, nem tampouco enterrá-lo em qualquer lugar. Somente o enterraria no cemitério. Custasse o que custasse. Se não fosse naqueles dias, ao menos em um futuro qualquer, Fifi estaria enterrada ao lado dos defuntos da cidade. Era a profecia de Dona Mina. O corpo de Fifi, colocado sob o alpendre da casa e dentro de vasilhame com água e sal, começaria a feder a qualquer hora. Estava inchado que fazia gosto. A qualquer momento, poderia explodir numa carniça cheia de vermes comedores de defuntações. A viúva lembrou que Maria Célia de Alípio Boca Santa era dona de um quinhão de terra ao lado direito do cemitério. Rumo para a casa dela. De lá retornou quando a noite já andava a meio. Pela manhã, antes que o corpo de Fifi explodisse por conta da ação das moscas varejeiras, Dona Mina fez enterrar o corpo da cadelinha Fifi num buraco cavado rente ao muro do cemitério no quinhão de terra que ela acabara de adquirir à filha de Alípio Boca Santa. Se o padre e o bispo não reconheciam que a sua cadelinha era quase um ser humano, ela, Felismina, daria à sua fiel companhia um enterro digno. Dias depois, mandou erguer um vistoso mausoléu revestido com belas pedras de mármore cor de rosa. Coisa de rico. Um mausoléu em tamanho natural. Ali, ela também pretendia ser enterrada, um dia.
Um ano depois, o cemitério passou para o controle da Prefeitura Municipal, por conta de disposição legal. E três anos após a encampação do cemitério pelo poder público, o prefeito desapropriou o quinhão de terra que Dona Mina comprara a Maria Célia, com o fito de aumentar o cemitério. E foi assim que o mausoléu da cadelinha de Dona Mina passou a integrar o cemitério, como ela tinha profetizado. E nele, ela também seria enterrada um ano e meio depois.
Ainda hoje, dizem na cidade que a alma de Dona Mina andeja em penitência, arrastando a alminha da cadela Fifi, em noites de lua cheia. É o que dizem.

 

(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 19 de junho de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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