O GALO QUERREXE :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
Pitoco. Este era o nome do bichinho. Um galo querrexe que Dona Sinhazinha de Zé Pinto ganhou da comadre Julinha do finado Joca do Paturi. Apesar de pequeno como sói ocorrer com aquela racinha de galináceo, Pitoco era um infeliz para cantar nas primeiras e nas segundas horas da madrugada. Um cantinho engasgado como que a atropelar as notas da melodia dos penosos. Canto engasgado e perturbador. Nas vizinhanças não havia outro galo querrexe a não ser Pitoco. Os demais galos eram encorpados galos caipiras ou de terrança, como também era chamada a raça de galinhas caipira. O galinho pedrês de Dona Sinhazinha vivia no pequeno quintal cimentado da casa ampla onde ela morava com o marido e onde o casal recebia nos fins de semana os dois filhos casados, com as noras e os oito netos, cinco filhos de Eduardinho e três filhos de José Pinto Filho, o primogênito. A mulher deste, Marta Maria era um doce de pessoa. Uma nora que mais parecia uma filha. Já a tal Sílvia Regina, mulher de Eduardinho, era esnobe. Uma verdadeira peste, como dizia Tia Lucinda, irmã de Dona Sinhazinha. Esta nora não se dava bem com ninguém. Nem com ela mesma. Eduardinho, se ele fosse outro, viveria no inferno em vida, atormentado pela mulher. Só que ele era cabeça fria. Um verdadeiro iceberg. Não estava aí, nem ia chegando. Se o mundo se acabasse, azar do mundo.
A casa ampla de Dona Sinhazinha e de Zé Pinto era no subúrbio da capital. Ali eles criaram os filhos, que nasceram no Catolé, povoadozinho mais atrasado do que andada de cágado. A vizinhança toda, sem exceção, adorava o casal que já se arriava nos anos. Os moradores dali eram interioranos em sua esmagadora maioria. Uns daqui, outros dali, outros mais dacolá. O subúrbio respirava ao interior. Porém, contudo, e, todavia, eis que se mudou para a Rua de Dona Sinhazinha uma família da Bahia. Não pareciam pessoas ruins. Não pareciam. Mas, não durou muito e o novo vizinho, um tal de Mané Charuto, deu para implicar com Pitoco, com a cantoria engasgada do galinho querrexe. Reclamou a Zé Pinto. Disse que não estava disposto a continuar ouvindo o cocoricó do galo miúdo. Exigiu uma providência. Ora, Dona Sinhazinha, avisada pelo marido, afirmou que o galo já estava ali quando os vizinhos vieram de mala e cuia para aquela Rua. Dar cabo do galinho? Nem pensar. Até porque seria uma malvadeza desmedida matar o bichinho e passá-lo para a panela. Não daria um frito. Não daria para encher o buraco de um dente estragado. E dentes estragados, ela e Zé Pinto os tinham aos montes. Dar fim a Pitoco, nem pensar.
O vizinho queria, porque queria ver o fim do galo querrexe. Solução? Ah, ele tinha! Afinal, a filha caçula era namorada de um cabo do Exército. Pronto. O futuro genro daria um jeito. Falaria com ele. Os militares não estavam de cima? Não botaram o presidente para correr. Não estavam prendendo um montão de gente? De deputado a governador? Por que não podiam prender um galo? E, quem sabe, até o dono do galo!
Sábado. Noite de lua. O cabo Pedroso chegou para namorar. Ao invés da namorada, ele deu de cara, ainda no portão, com o futuro sogro. Mané Charuto estava fumando. Aliás, fumava desbragadamente. E morreu de doença braba, comendo-lhe as entranhas. “Boa noite!”, disse o cabo. Sem responder ao cumprimento, Mané Charuto segurou o moço pelo braço e o puxou para um canto do arremedo de jardim. “Meu rei, você vai fazer um favorzinho ao pai da sua namorada. Um favorzinho besta. Olhe bem, que é coisa de futuro genro para futuro sogro”.
No dia seguinte, logo cedo, um jipe do Exército estacionou em frente à casa de Dona Sinhazinha. E buzinou. Insistiu na buzina. Dona Sinhazinha acudiu, abrindo a porta. Zé Pinto, o marido, estava de viagem. Dois soldados desceram do veículo. Um deles, um carinha sardento, ainda salpicado de remela no canto do olho, indagou: “É a senhora que tem um galo querrexe, que não deixa os vizinhos em paz?”. Dona Sinhazinha, que tinha a verve do povo do Catolé, povinho tirado a dizer lérias, respondeu: “Não, meu filho. O meu galo é de paz. Ele não faz guerra com ninguém. Muito menos com o Exército”. Meio sem jeito, o soldado respondeu: “Nós temos ordem do sargento Marcelino para levar o galo preso”. Dona Sinhazinha ainda argumentou: “Meu filho, o meu galo não matou, não roubou e não é comunista. Por que ele vai ter que ser preso?”. E o soldado, perdendo a paciência: “Deixe de conversa fiado, dona, senão no lugar do galo quem vai é a senhora”. Ah, era tudo o que Dona Sinhazinha queria ouvir, destemida como ela era! “Estou pronta, meu filho. Por onde eu subo?”. Subir no carro, claro.
Pois foi assim que Dona Sinhazinha acabou presa por dois soldados do Exército, que deveriam prender o galo querrexe. No quartel, o sargento, primo do cabo, espantou-se: “Ôxe! O galo querrexe comeu milho demais e mudou de sexo, foi? Que presepada é essa, soldado?”, perguntou ao soldado sardento. O soldado enrolou-se. Naquilo, Dona Sinhazinha subiu nos tamancos: “O senhor, ‘seu’ sargento, está me chamando de galinha?”. O sargento, então, deu-se conta do que acabara de dizer: “De jeito nenhum, minha senhora. Ocorre, com todo o respeito, que eu mandei trazer um galo querrexe, e eis que os soldados me trazem a senhora. Não atinei para a realidade. Perdão”.
O próprio sargento foi dar voz de prisão ao galo querrexe de Dona Sinhazinha. Ao chegar à casa onde o galinho fazia serenata com sua vozinha engasgada, ele fez Dona Sinhazinha buscá-lo. E lá veio a dona do galinho com o dito cujo nas mãos. Era um tico de galo. Menor do qualquer galo querrexe. Um galo querrexe anão. Ao vê-lo, o sargento desandou a rir. “É menor do que eu imaginava!”, exclamou o sargento, ainda sorrindo. Na verdade, gargalhando. “Quanto a senhora quer pelo galinho?”, perguntou o militar, que era um tipo gorducho, muito parecido com o sargento Garcia dos filmes do Zorro. “Vender o meu galinho? O senhor quer comparar o meu querrexe?”.
O sargento ofereceu pelo galinho querrexe um dinheiro muito além do que valia um bom galo de briga. Dona Sinhazinha não se fez de rogada. O galinho querrexe, a partir daquele dia, e não sei até quando, passou a ser a mascote do Batalhão verde-oliva.
Sem saber da compra do galinho pelo sargento, fato que, deveras, não importava, no domingo seguinte, Mané Charuto fez um churrasco para o cabo, namorado da sua filha. Comeram e beberam à vontade. Afinal, o rapaz, apesar de cabo, mostrou que tinha moral no Exército. Moral de oficial. De coronel. Quem sabia, até de general. O galo querrexe não mais o incomodava. Para Mané Charuto valia a pena ter uma filha casada com um sujeito daquele. Ele poderia ser muito mais útil. O tempo haveria de dizer.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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