Uma moça perdida? :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
O ano era 1967. Maria Clara, dita Clarinha, era a filha mais nova de Sebastião Peixoto, o Bastião Boca de Anjo, assim apelidado porque só sabia dizer “amém”. Um mimo de moça, bem criada, estudiosa e prendada. Formosura de morena clara, olhos ligeiramente esverdeados, cabelos anelados, negros, corpo modelado por fadas benfazejas. Uma preciosidade que Bastião e Dona Clemência, sua esposa, devota de Nossa Senhora da Conceição, nome de sua santa mãe, esperavam dar em casamento a um jovem respeitador. Filha caçula, ponta de rama, era cuidada com extremo carinho.
Eram apenas 16 anos. Essa a idade de Clarinha. Botão de rosa desabrochando sob o orvalho das madrugadas, brilhando ao abrir o primeiro olho do sol. Brilhando o dia inteiro. Perfumando manhãs, tardes e noites. Era o mimo, o bibelô da casa. O caminho a ser percorrido pela filha caçula de Bastião Boca de Anjo era o do casamento na Igreja e no cartório, como convinha a uma moça de família. Mas, como cantou Drummond, “no meio do caminho tinha uma pedra”. E essa pedra atendia pelo nome de Cicinho de Fortunato.
Cicinho, ou Antônio Cícero Gonçalves de Azevedo, filho de Fortunato Menezes de Azevedo, proprietário das fazendas de gado “Monte Verde”, “Toca da Onça”, “Marmeleiro” e “Umbuzeiros”. No passado fora dono de fábricas de descaroçar algodão, quando o ouro branco dominava a economia da região. Ao exemplo de Clarinha, Cicinho era o filho caçula. Espevitado, bem diferente dos irmãos. Mulherengo como o pai. Aos 18 anos, já tinha varrido em namoro meio mundo de mocinhas. Não se sabia, porém, de abusos. Se algum foi cometido, morreu no silêncio da ofendida.
Cicinho e Clarinha deram para namorar no colégio. A diretora chamou a atenção de Dona Clemência. Esta, ciosa da filha, de tudo fez ciente ao pai. Bastião era marchante. Tinha lá de seu um pequeno pé de meia, umas terrinhas e umas poucas cabeças de gado. Homem direito como poucos. Muitas cabeças de gado ele comprou a Fortunato, para o abate. Tinha, pois, boas relações com o fazendeiro. Não deveria fazer mal que a filha namorasse o rapaz, apesar de sua fama de mulherengo, namorador e frequentador, desde cedo, do cabaré de “seu” Vavá, no Pau Que Chora. Aquilo, todavia, era comum por aquelas bandas. O fogo dos rapazes se acendia num piscar de olhos. Triscou, pegou. Natural.
Bastião fez uma exigência para dar sinal verde ao namoro: que o rapaz cortejasse sua filha em casa, como era de bom proceder. Chamou Cicinho nos arreios. O rapaz não se fez de rogado. Concordou. Namoro sem melindres. Tudo correndo nos conformes. O rapaz não era o bicho papão que se dizia ser. Não carregava as tintas do tinhoso. Nem feder a enxofre, fedia. Respeitador. Dona Clemência louvava o futuro genro às amigas e comadres. Dona Almerinda de “seu” Afonso do Pancula era a única que tinha peito para discordar do comportamento do rapaz, para colocar sob suspeita o filho do ricaço. “Esse cordeiro ainda vira lobo, Clemência. Quem avisa amiga é”. Porém, Dona Clemência não dava trela à amiga, que só não falava de Deus e dela mesma. “Armaria!”, benzia-se Dona Clemência, invocando a Mãe de Jesus, no seu modo peculiar de dizer “Ave Maria”. Uma moça perdida? - Foto: Reprodução/Internet
O namoro andou por bons caminhos. Até à missa dominical Cicinho passou a ir, acompanhando a namorada e a futura sogra. O rapaz nunca ouviu aprovação ou reprovação por parte da família. Casamento à vista, como pensavam Clarinha e os pais.
Clarinha pediu ao moço para esperar na sala, enquanto lavava as frutas. Mas ele a acompanhou até a cozinha. Ela não disse nada. Os dois experimentaram as jabuticabas. Deliciosas. Sorrindo, ela colocou uma na boca do namorado, que lhe lambeu os dedos. Ela sentiu um calafrio. Ele continuou lambendo. Dos dedos para a boca. Boca com boca. O mundo girou. Mais calafrios.
Já escurecendo, os véus da noite se derramando sobre o mundo, aves buscando seus ninhos, bichos procurando suas tocas, Dona Clemência retornou para casa, que estava silenciosa. Chamou pela filha. Nada. Tornou a chamar. Nem um suspiro. “Clarinhaaaa...”. Sem resposta. A mãe, já aflita, foi ao quarto da filha. Acendeu a luz. Ela estava deitada, chorando baixinho, enroscada no próprio corpo. No chão, muitas jabuticabas espalhadas. Dona Clemência, então, lembrou que na noite anterior a filha pedira ao namorado que lhe levasse as frutas que tanto apreciava. Apavorou-se. Pensou logo no pior. A filha caçula desonrada em sua própria casa. Ela, a mãe, que deveria zelar pela castidade da filha, fracassara. Sentou-se na cama. Não conseguia falar. Um nó na garganta prendia a fala e o choro. E agora? O marido era um homem de paz. Não sabia ter voz altiva. Cicinho era um perdido. Um descarado. Rico que era decerto não haveria de querer corrigir o erro, reparar a honra que ele arruinara. Por que deixara a filha namorar um perdido daquele? Por que a deixara sozinha em casa naquela tarde? A sua filha teria que ir para longe, para São Paulo, onde morava a outra irmã, para ver se encontrava um homem que lhe aceitasse assim com a honra perdida? Sentiu as forças sumirem. O coração disparando. Conseguiu balbuciar: “Minha filha...”.
Clarinha levantou a cabeça, interrompeu o choro miúdo e disse: “Mãe, ele quis abusar de mim. Eu não deixei. Eu não estou perdida, mãe. Eu não dei a minha honra a ele, mãe, e por isso ele acabou o namoro, mãe”. Dona Clemência, agora chorando, perguntou: “Você não está desgraçada, minha filha?”. E ela: “Não, mãe. Eu não ia dar esse desgosto à senhora e ao pai, mãe. Estou inteira”. E estava mesmo. Ela resistira. Esteve a ponto de ceder, mas não se tornou uma moça perdida. Flor preciosa que soube guardar sua preciosa flor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 03 e 04 de maio de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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