Aracaju (SE), 23 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 04 de julho de 2015

Dona Vilma e a mandioca de “seu” Davi :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Tinha quem gostava de plantar mandioca, ou seja, de fincar na coveta um pedaço de maniva ou manaíba. Tinha quem gostava de arrancar mandioca. Isso, na roça. Já nas casas de farinha, tinha quem gostava de raspar ou descascar a mandioca. Tinha quem gostava de ralar a mandioca. Tinha quem gostava de peneirar a massa da mandioca. Tinha quem gostava de mexer a massa da mandioca no forno, fornada após fornada. Em toda farinhada era assim. E ao bem da verdade, todo dia era dia de festa na casa de farinha de “seu” Davi, de terça-feira a sábado. O dono da casa de farinha nem sempre era o dono da mandioca. “Seu” Davi de Marieta do finado Tonho de Crôa recebia mandioca (no bom sentido, claro!) de muitos sitiantes, que não tinham onde transformar seu produto agrícola em boa farinha, fina e sequinha, como convinha, e convém, a uma boa farinha, nas bandas da minha terra. É de se lembrar da farinha de Zé Gato, de Isaías de Tide, de Zé de Amélia, de Teté, de “seu”, Firmino, de Sil de Dagraça e tantos outros farinheiros. Parte da mandioca vinda de sitiantes não era comprada por “seu” Davi, mas, sim, recebida para a transformação à custa de um quinto da produção deixada para o dono da casa de farinha. Era a regra.
“Seu” Davi era um sujeito que envelhecia sem que o coração perdesse a jovialidade. Era do tipo “avozão”, sempre devotado aos netos, que formavam um “cardume”. Também pudera, pois ele era pai de nove filhos, sem contar os três que morreram em tenra idade, como acontecia muito naqueles tempos. Bom patrão, misturado no serviço com as mulheres que para ele trabalhavam. Homem de prosa fácil. Brincalhão como ele só.

Para Dona Vilma a vida ia e vinha, semana após semana, sempre na casa de farinha de “seu” Davi, na bifurcação do João Ventura com o Cruzeiro da Missão, onde, outrora, fora a bodega de Zé Pequeno, que era primo de minha avó materna, e era, também, barbeiro e fazedor de malas de madeira pintadas a tabatinga e com fechaduras fabricadas por ele mesmo. Bem. Dona Vilma cresceu trabalhando em casas de farinha. Era, por assim dizer, uma mulher sapiens. Meu Deus! Desde menina, acompanhando sua falecida mãe, Dona Tereza de Secundino de Maria Piá, de início nas casas de farinha de “seu” Pedro Pimenta e de Dona Sinésia, e, depois, na de “seu” Davi. Quantos anos ela tinha de farinhadas? Nem ela sabia dizer. Mas, o que ela mais gostava de fazer era peneirar a massa da mandioca. E não se cansava de cantarolar a música “Farinhada”, composição de Luiz Gonzaga e Zé Dantas: “Tava na peneira eu tava peneirando / Eu tava num namoro eu tava namorando. / Na farinhada lá da Serra do Teixeira / Namorei uma cabôca nunca vi tão feiticeira / A mininada descascava macaxeira / Zé Migué no caititú e eu e ela na peneira. // Tava na peineira eu tava peneirando / Eu tava num namoro eu tava namorando. // O vento dava sacudia a cabilêra / Levantava a saia dela no balanço da peneira / Fechei os óio e o vento foi soprando / Quando deu um ridimuinho sem querer tava espiando. // Tava na peneira eu tava peneirando / Eu tava num namoro eu tava namorando. // De madrugada nós fiquemos ali sozinho / O pai dela soube disso deu de perna no caminho / Chegando lá até riu da brincadeira / Nós estava namorando eu e ela, na peneira...”. Pois sim. Farinhar era coisa boa.
Dona Vilma criou a família, entrando dia e saindo dia, labutando nas casas de farinha. Além do dinheirinho semanal, ganhava três cuias de farinha e os beijus que podia fazer no sábado: de tapioca, misturado, de amendoim, de coco com açúcar. Os meninos adoravam. O marido foi-se embora com uma catraia sem-vergonha e nunca deu notícia. Também não precisava. Ela soube criar os quatro filhos, três meninos e uma menina. Todos ajustados na vida. Ela, todavia, não conhecia tempo ruim. Também, tempo pior não poderia haver do que uma vida inteira metida nas farinhadas, raspando, servando no caititu, rodando no rodete, botando e tirando prensa, peneirando e mexendo no rodo, para uma mulher sem marido e com quatro filhos para dar de um tudo, em ordem de pobre. Apesar de toda luta, Dona Vilma era uma mulher de bom humor. Sorridente. Contadora de lérias. “Ô Dona Vilma, como vai a mandioca de “seu” Davi?”, perguntava Edelzuita, colega de farinhada. “E eu lá sei, minha filha! Pergunte a Dona Sinhá. Ela é quem deve saber da mandioca do marido. A única coisa que eu sei é ter que raspar a danada”. E ria à larga. Farinhadas... Ah, comer um bocado de farinha mole com sal e pimenta! Ela gostava por demais. Para quem não sabe, farinha mole era a farinha que estava sendo mexida no forno antes de ficar seca. A massa peneirada ia sendo revolvida no forno e secando aos poucos até ficar no ponto. No meio termo estava a chamada farinha mole. Comer muito, porém, era ter dor de barriga, na certa.
Além das farinhadas, Dona Vilma ainda tinha que cuidar das plantações que fazia no quintal de meia tarefa de terra. Ali ela semeava macaxeira e feijão, milho e fava, além de hortaliças. Para tanto, na época apropriada para tal, ela se virava no domingo e na segunda-feira, dia da feira semanal e, por isso mesmo, dia de folga nas farinhadas. Como dizia a vizinhança, ela trabalhava como um homem. Aliás, muito mais do que muitos homens. A barra de sua saia valia mais do que muitas bocas de calças. De verdade. Mulher daquele tipo jamais desceria ao volume morto. Não, ela não!
Um dia, “seu” Davi comprou sem ver uma partida de mandioca. Comprou-a de Maurício de Filomena, sujeito ladino, que enfiou folhas nas ventas do comprador. E “seu” Davi não era homem de se deixar levar pelo gogó de ninguém. Porém, até parecia que o tal Maurício tinha benzido o farinheiro com ramo de vassourinha salpicado em água de pó de asa de morcego. “Seu” Davi comprou sem ver. Comprou mandioca plantada em brejo, boa parte imersa em água ferrosa. Dinheiro perdido. “Quem compra o que não vê, dor de cabeça há de ter”, dizia Dona Vilma. “Seu” Davi mandou arrancar a mandioca que comprou sem ver. Pela manhã, ele teve que ir ao povoado Saco Grande em visita a um primo arruinado da saúde. Ao retornar para casa, à tarde, foi ver a mandioca comprada a Maurício de Filomena. Na casa de farinha estava Dona Sinhá, que lhe disse: “Davi, você tá mesmo de cabeça amolengada. A sua mandioca num tem prestança. Tá podre!”. E ele, espirituoso como sempre: “Depois de tanto tempo, o que era que você ainda queria Sinhá?”. As seis mulheres que se encontravam no trabalho, dentre elas Dona Vilma, caíram na gargalhada. “Seu” Davi as acompanhou na galhofa. E a pobre da Dona Sinhá ficou sem terra nos pés, vermelha como pimenta malagueta madura. Não se deu conta do que disse até ouvir o estrondo da gargalhada geral. Trabalhar com mandioca podia ser duro, mas era divertido.
Uma coisa era certa: Dona Vilma sabia muito bem, diferentemente de certas pessoas, que não vivem na planície, mas, sim, no planalto, que a mandioca, embora de grande utilidade, não era, e nunca haveria de ser, uma das maiores conquistas do Brasil, como, dias desses, se disse por aí. Mandioca... Uma das maiores conquistas... Assim seria dilmais. Ou melhor, demais. Estão metendo a mandioca onde não se deveria metê-la. Ô sofrência!

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 05 e 06 de julho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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