O nome errado :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Até Manequinha do Brejo, pai de santo, foi chamado. Ele, sempre arredio, até se prontificou a sair do seu quase esconderijo na baixada do Brejão do Nêgo, para dar um adjutório ao padre Belisário Fortunato e ao pastor Conrado Pires, que se uniram, pela primeira vez na vida religiosa da cidade, com o intuito de combater a desgraça que tinha se abatido sobre José Rodolfo Marques Montes. Pobre homem que, de repente, não mais que de repente, viu-se acometido por uma doença desgramada, que lhe cozinhava os miolos, fazendo-o gemer dia e noite sem parar. Um desassossego desmedido. E que homem bom era José Rodolfo, benquisto por toda a cidade e para além dela! Uma alma de Deus. Um santo. Caiu em desgraça por um descuido dos céus. Só podia ser. Mas, Deus não haveria de lhe faltar.
José Rodolfo apareceu na cidade como que por encanto. Sozinho, um rapazola, jamais procurou casamento. Viveu para servir. De onde ele viera, não se sabia. Ele sempre desconversava quando alguém puxava o assunto. Um homem de bem, como poucos que ali nascera ou se arranchara. Montou um comércio de miudezas e foi-se fazendo na vida. Ajudava a quantos podia. Devoto de São Francisco de Assis, a quem, na maior das intimidades, chamava de São Chiquinho, foi o principal contribuinte para a edificação da nova igreja matriz, que substituiu a antiga, muito acanhada para acomodar os fiéis, especialmente nas missas domingueiras. O padre Belisário não lhe poupava encômios. Merecidamente. Fez campanhas para a construção da Casa de Parto, para instalar o Ginásio, um sonho da comunidade, sobretudo dos mais pobres que não tinham meios para mandar os filhos e filhas estudarem na capital ou noutra cidade maior.
Recém-chegado à cidade, o jovem pastor Conrado Pires estabeleceu-se em casa alugada, para iniciar suas pregações da Palavra. Locador? José Rodolfo, que, além de fixar um aluguel em conta, ainda dispensou os três primeiros meses para dar tempo do pastor se ajeitar lá com os seus convertidos. Assim era a criatura atacada por tão grande malefício, uma doença esquisita, que os médicos da capital não deram conta de remediar.
Segundo se falava, até pai Manequinha recebia favores de José Rodolfo, nas festas de Cosme e Damião, que, no sincretismo religioso, representam os orixás Ibejis, filhos gêmeos de Xangô e Iansã. Era o que se falava. Ora, não seria à toa o adjutório do velho pai-de-santo, fazendo soar os atabaques em dias que nem eram de sua obrigação, para favorecer o doente. Dona Bela do finado Pedro Coceirinha torcia os beiços para o sincretismo. “Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, repetia. E esclarecia que São Cosme e São Damião eram dois irmãos gêmeos, médicos, que viveram na Ásia Menor. Ficaram conhecidos porque curavam pessoas sem cobrar dinheiro. Morreram por volta do ano 300 d.C. degolados. Nada a ver, pois, com os orixás gêmeos. Nada a ver.
A cidade mobilizou-se. Beatas faziam promessas, acendiam velas, entoavam ladainhas, realizavam círculos de orações. A comunidade do pastor Pires orava entre glórias e aleluias. Filhos e filhas de santo se esforçavam para evitar que José Rodolfo se tornasse um aruê e para que não fosse preciso realizar em sua memória um axexê.
Sem dúvida, a cidade estava diante da maior junção de forças espirituais em favor de alguém, como jamais foi visto e, provavelmente, jamais viria a se ver. Todos estavam em sintonia para afastar a doença do homem mais caridoso da localidade. Ah, quantas pessoas tiveram a fome mitigada por José Rodolfo! Quantas foram socorridas em tantas outras precisões!
Passaram-se dois meses e meio desde que os médicos da capital desenganaram José Rodolfo. Não havia na literatura médica conhecida um caso igual ao dele. Até médicos de São Paulo foram consultados. Exames foram enviados para o maioral de um grande hospital paulistano. Nada. Doença estranha. Desconhecida. Parecia que os miolos derretiam na cabeça.
Uma velha rezadeira, Dona Fiinha de Maurício do Pau D’Arco, avaliou o caso e vaticinou: “O que ele tem é semente de homem não ejaculada. Sobe para a cabeça e ferve os miolos do cristão. É coisa sem jeito. Não haverá de durar”. Ora, quem daria ouvidos a uma velha faladeira?
Quarta-feira, meados de abril. Zé de Vadico desceu a ladeira dos Carrapatos com um feixe de lenha na cabeça. Candeia branca, cujas folhas eram um lenitivo para doenças do fígado. A melhor madeira para se queimar no fogão a lenha. Zé de Vadico achou estranho que uma sucupira bem ao pé da ladeira estivesse florida. No mês de abril? Estranho. As florezinhas roxas estavam fora de tempo. Mau agouro.
Naquela mesma quarta-feira, José Rodolfo bateu a caçoleta. Não teve missa, nem culto, nem batida de atabaques que dessem jeito na doença daquele benfeitor da cidade. Consternação geral. Mamede de Secundino do Gravatá, que se dizia descrente nas coisas do alto, berrou, na bodega de Vânia Tanajura: “Ô, minha gente, cadê as rezas e tudo mais para salvar José Rodolfo? Cadê os santos e os orixás? Cadê o Deus de vocês? Estaria dormindo?”. Um herege. Um blasfemador, como disse Carolina de Maria Safira de Joãozinho Pé Ligeiro.
Corália, antiga doméstica da casa de José Rodolfo, tinha instruções para o caso dele bater as botas. Ela abriu um envelope, que ele lhe tinha confiado. Dentro, um testamento particular, disposições de última vontade e uma certidão de nascimento. O seu nome era, na verdade, Valdomiro Canuto de Bretas Peixoto. E, na letrinha miúda dele, uma explicação: era foragido da polícia maranhense desde os 17 anos, quando os membros de sua família, pai, mãe e dois irmãos, foram chacinados a mando de um ricaço, fazendeiro e grileiro de terras, que se apossara da propriedade de Bento Bretas Peixoto, seu pai. Ele escapara porque estava na casa de um parente, no Pará. Aos 17 anos, o conhecido por José Rodolfo fez-se nas armas e deu cabo do grileiro. A polícia o caçou, vasculhando palmo por palmo do território do Maranhão. Em vão. Com a ajuda de um parente materno, ele arribou no mundo.
Pronto. Ali estava o porquê de tantas rezas e tudo o mais não lhe terem poupado a vida, na sentença de Dona Fiinha: “Ô desgraça, rezaram para o nome errado. Por isso, a morte veio”.
Certo estaria William Shakespeare ao dizer, pela boca de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe a nossa vã filosofia”.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE