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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 01 de agosto de 2015

O feitiço :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Sá Tunina de Aparício da Cobra d’Água subiu nos tamancos, entocou-se no ódio e no desejo de vingar-se. Custasse o que custasse. A desfeita seria cobrada em dobro. Se fosse preciso, até juntaria dinheiro para saciar a sua sede de vingança. Pagaria a um pistoleiro dos cafundós das Alagoas, lugar de sujeitos destemidos, que não deixavam cair cisco na butuca dos olhos. “Aquele desinfeliz não tarda por esperar”, dizia a mulher de Aparício, que tinha, como se dizia por ali, um instinto de cobra. Dizia-se que ela mandou surrar uma pobre mulher da vida livre porque a coitada olhara com olhos compridos para Aparício, na feira. Uma única vez. Surra de rabo de teiú.
    
A desfeiteada que o infeliz deixou na casa de Sá Tunina atendia pelo nome de Marcinha. Márcia Florisbela de batismo e cartório. Filha única. Mimosa e mimada. Criada pela mãe para ser esposa e mãe exemplar. Sá Tunina pagara escola primária, professora de corte e costura, e de bordados também. A moça aprendeu na escola o suficiente para ler uma carta e escrever outra. Mais do que isso não precisava para arranjar um bom partido, que lhe fizesse subir ao altar de Nossa Senhora. Para que mais? Durvalina, irmã de Sá Tunina, mãe de três filhas letradas, cada uma com diploma de professora, queria ver a sobrinha estudando, como suas filhas. Mas a irmã mais velha não se dava por isso. Filha de Sá Tunina não se daria ao desfrute de estudar à noite. Estudo ginasial em diante só à noite, na cidade.
    
Vamos, agora, ao infeliz. Chamava-se Eduardo Barros de Faro. Era da família Faro de muitos lugares da Cotinguiba e dos Barros dali mesmo. Gente sem desmerecimentos dos dois lados. Dudu, como era chamado pelos parentes e amigos, era um moço trabalhador, cuidando das terras que o pai deixou para a esposa e os dois filhos, ainda menores de idade, quando ele, o pai, despachou-se para o chão frio do cemitério de Maruim, sua terra de nascimento, mortalmente ferido por uma pontada certeira de uma vaca parida e mais braba do que cascavel choca.
    
Dudu conheceu Marcinha numa quermesse. Marcinha nunca tivera um namorado. Também, ainda não tinha completado quinze anos. Olhou de soslaio para o moço. Nele pousou o canto do olho, um olhar sonso, de quem procura sem procurar direito, de mentirinha. Olhar maroto. Sonhador. Preso, doido para se soltar. Marcinha... Marcinha... Os venenos do mundo cabem num olhar. Não no de Marcinha, mas no olhar que podia perceber o seu olhar. Que o captaria como se capta água de chuva ligeira em tempos brabos de seca. Mais do que depressa, para não se perder uma gota sequer. Dudu não perdeu um lance do olhar de soslaio, faceiro, de quem queria se entregar, mas temia fazê-lo. Ele retribuiu o olhar, mas de frente, decidido, sem esconderijos. A íris brilhando muito mais do que o sol de verão. E não foi só o olhar. Ele deixou irradiar um sorriso, que quase lhe saiu dos lábios, para, à média distância, lançar-se nos lábios dela, onde abelhas jataís deviam ter depositado favos de mel.
    
Coisa de dois meses depois daquele encontro casual, eis que os dois pombinhos estavam de namoro na porta. Namoro que durou o tempo de duas estações do ano: verão e outono. Na estação outonal, depois das brasas do verão, as folhas começam a morrer. As árvores desnudas, especialmente nas terras frias, mostram muitos braços secos, agitados ao vento, quais espantalhos. No amor, o outono não tem a relva verde do inverno. Não tem as flores da primavera, que perfumam vales e montanhas, jardins e alamedas. Não tem os brasis do verão em que as areias das praias são para o aconchego e a curtição. Outono... O fim. O namoro de Marcinha feneceu como nascido havia. Num átimo. Dudu encantara-se por uma prima distante, que morava em São Paulo. Para lá o rapaz se aboletou. Foi estudar e ficar ao lado do novo amor. Despachou Marcinha por carta, no tempo em que ainda se escreviam cartas. Não foi, claro, uma carta de amor ridícula, como diz o poema de Fernando Pessoa. Foi simplesmente uma carta sem amor.
    
Marcinha caiu em prantos. Sá Tunina alvoroçou-se. O enxoval da filha já estava quase pronto. Era no tempo em que as mães cuidavam pessoalmente dos enxovais das filhas casadoiras. Às vezes, muito antes das meninas arranjarem pretendentes. A parentela, as comadres e as vizinhas deitaram falação. “Onde já se viu moço de posses se enroscar pra valer com moça que, além dos três vinténs, pouco tem de seu?”. Que línguas! Que feras! Mas, Sá Tunina não deixava por menos. Lascava todas elas.
    
Sá Tunina sentiu-se ferida. Amarga demais. O rapaz parecia tão sério, tão decidido a casar-se com a sua filha, que ela, como mãe zelosa de filha única, já contava com o genro de bom proceder. E de bons haveres. Por que não? Marcinha recolheu-se em casa. Se lágrimas enchessem um rio, as delas encheriam o rio São Francisco. Definhou. Quase morreu. O primeiro amor lhe trouxera o primeiro desalento. O primeiro desencanto. Mal sabia ela que a vida não era feita apenas de torrões de açúcar. Sá Tunina vingar-se-ia da vergonha que Dudu infligira à sua filha. A morte dele seria o seu lenitivo. Ela era, sim, uma mulher de bofes muito ruins. Tivera a quem puxar: o pai era afamado pistoleiro do Pão de Açúcar. Um tio e dois irmãos, também. Ninguém entendia como Aparício, tão pacato, fora se meter com uma raça de víboras daquela. Bem. Só a morte do atrevido acalmaria o coração de Sá Tunina, que procurou agir.
    
O casebre de Faustino Rezador era lúgubre. Caindo aos pedaços, numa bifurcação da estrada da Boa Vista, recuado, escondido. E muito mal cheiroso. Cheirava a coisa ruim. Cheirava a morte. O velho mandingueiro fez o feitiço. Para matar Dudu, onde ele se encontrasse. Meia-noite em ponto. Uma encruzilhada. Um pé de dedo-do-cão. Um sapo com a boca cozida e dentro dela o nome de Dudu num papel ensebado e salpicado com pelos de aranha caranguejeira. Feitiço certeiro, que Faustino não falhava. Foi o que ele garantiu. E era a sua fama.
    
Uma semana depois, chegou por conhecidos da família de Dudu, a notícia da sua morte. Morreu de bala perdida, lá em São Paulo. Sá Tunina foi ter com Faustino, o mandingueiro. Agradecer-lhe? Não! Foi buscar o dinheiro do pagamento pelo feitiço. Ora, Dudu fora atingido pela tal bala uma semana antes do feitiço ter sido encomendado. Ou seja, não foi o feitiço que fez a bala atingi-lo. Faustino era um charlatão, como ela sempre pensou. Onde estava com a cabeça, quando foi procurá-lo?
Faustino Rezador deu duas tragadas no cachimbo de bola de barro. Soltou umas baforadas. A fumaça fez voltas no ar. Ele atirou longe uma cusparada, do tipo cagada de pato. E disse: “Sá Tunina, este preto véio tem mais artes do que todos os feiticeiros da Bahia. O que eu sei veio da África, trazido pelo meu avô, Nungund’Elê Mobá. Quando vosmecê pensou em vir aqui, foi um mês antes de vir de fato. Num foi?”. Ela assentiu com o balançar da cabeça. E ele tornou: “Apois então! Eu soube antes de vosmecê vir, o que vosmecê queria. Matar o moço por causa de um namoro acabado? O que é isso, Sá Tunina? Vosmecê num tem coração. É pior que cobra corá. Na boca do sapo debaixo do pé de dedo-do-cão eu botei foi um fio do seu cabelo, que eu tirei quando lhe dei um passe, aqui mesmo, naquela tarde. Se alembra do dia que vosmecê me negou um caneco d’água e me tangeu do seu terreiro, feito um cachorro sarnento? Se alembra? E ainda mandou a puliça aqui, pra me engaiolar, mentindo que eu lhe desfeiteei”. Sá Tunina estremeceu. Aquilo fora há tanto tempo... Entretanto, o escorraçado nunca esqueceu.
Dali a duas semanas, Sá Tunina deixou Aparício viúvo e Marcinha órfã.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 02 e 03 de agosto de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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