Tolerância religiosa :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto de arquivo: Click Sergipe)
Um dilúvio de proporções talvez iguais àquele que a Bíblica narra, o do tempo de Noé. Chuva, chuva, chuva. Cinco semanas de chuvas torrenciais. Trovões estrondando por tudo que era canto e relâmpagos em tenebrosa festa, riscando os céus como serpentes de fogo em luta. Raios? Caíram muitos. No Boqueirão, no Lajeado, nas Forquilhas, no Zabelê, na Matinha dos Afonsos, na Mata Escura e no Jenipapo. Até aquela manhã, eram essas as localidades nas quais se sabia das ocorrências de raios caídos. Muitas cabeças de gado bovino queimadas. Vítimas humanas somente duas, mas, graças a Deus, não fatais. Dois meninos que jogavam bola num descampado, lá para as bandas do Corno Sabido. Escaparam por milagre de Deus, na primeira pancada d’água.
As orações não pareciam dar resultado. Pouca fé dos religiosos? Podia ser. Porém, podia também não ser. Sabia-se lá! Beatas, devotos, crentes na Palavra, mulheres de véu na cabeça, outras de vestidos abaixo dos joelhos, conforme fosse o credo, atabaques batendo fora de hora, tudo isso, e muito mais, para aplacar a fúria dos céus. Cada credo religioso fazia o que entendia fazer em termos de orações e súplicas. Nada. O mundo estava prestes a sucumbir. Não havia uma arca como a de Noé, para a salvação de alguns. Nem mesmo de oito, como os de Noé. Os riachos subiram a uma altura desmedida. Água cobrindo as árvores mais altas. Povoados inteiros submersos. A cidade também. Casas sumiram, desmancharam-se como castelos de areia.
O prefeito Zé Matoso foi visto descendo a rua principal, atracado ao cofre da Prefeitura, numa canoa, sendo levado pela correnteza. Cofres não afundam? Aquele pareceu que não. Afinal, a canoa era fornida. Theodomiro Barbosa, agiota, viu as notas promissórias dos seus devedores sumirem como por encanto. As águas pareciam querer acertar muitas contas. O comércio local foi para as cucuias. Não restou nada para vender e comprar. Os arremedos de bancos das duas pracinhas nunca mais seriam vistos. O calçamento de pedra bruta – ainda não era o tempo dos paralelepípedos – daria, mais tarde, lugar ao lamaçal.
A cidade virou de ponta-cabeça. No cemitério, restos de defuntos lutavam para se erguer. Mas, eram apenas restos. Não haveria mais cemitério. Não ali. Tudo esburacado. As covas rasas se abriram em pequenas crateras. Os toscos mausoléus desabaram ou entortaram. O campo santo virou um ossuário a céu aberto.
A cidade estava ilhada. Outras cidades também. Num raio de vinte léguas em quadra, a destruição era absurda. Não dava para contar as mortes. Não seriam poucas. Os prejuízos eram incalculáveis. As trovoadas tinham se concentrado naquela região. Parecia um castigo. Dona Amelinha de João do Rio das Paridas sugeriu ao padre João Maurício, de quem era vizinha, parede e meia, que ele se juntasse ao pastor Ananias e ao pai-de-santo Tonho de Totoinho da Baixa do Sapo, para uma oração conjunta, cada qual na sua fé, mas todos com o mesmo intento. Afinal, Deus devia ser um só, embora o povo quisesse que Ele fosse muitos. O padre recusou a sugestão. Ora, onde se tinha visto um padre se juntar a um desses desviados da Santa Igreja e, pior ainda, a um daqueles de despachos nas encruzilhadas, coisas do demo? “Dona Amelinha, a senhora precisa de confissão! O tinhoso está lhe tentando”, disse o padre ao pé do muro que separava os dois quintais.
As chuvas continuaram e a destruição também. Tinha horas que o céu parecia uma fornalha. Abria-se em fogo. Os trovões ribombavam como se uma guerra nos céus fosse travada entre as coortes divinas e diabólicas. Era como se o anjo decaído estivesse novamente revoltoso contra o Criador.
O povo começava a passar fome. Os estoques de mantimentos dos armazéns de Dona Cida, de Geraldo de Cantidiano e de Roque da Peixaria estavam a zero. As mães que amamentavam já não tinham o que dar aos filhos, que sugavam peitos secos. Choro e mortes. Dona Amelinha continuou a infernizar a vida do padre. “Ou junta todo mundo de religião diferente, ou vai tudo se acabar”. Depois de muito matutar e orar, pedindo iluminação ao Santo Espírito, o padre não sabia se deveria ou não ouvir a sugestão da beata, sua vizinha. Não tinha como consultar o senhor bispo. Juntar-se ao pastor e ao pai-de-santo não seria pecado? Não seria ele passível de punição canônica? Ou Deus seria servido com a junção de forças espirituais tão diversas, mas tudo para o bem comum? Incertezas. Inquietações. Temores.
Início da tarde de sábado, já na sétima semana de dilúvio. O padre conseguira mandar recados para o pastor Ananias e para Totonho de Totoinho, o pai-de-santo da Baixa do Sapo. Em princípio, os dois relutaram, cada um com os seus motivos, ou sem eles. Depois, cederam. No fim da tarde, ambos chegaram à casa paroquial, um depois do outro, os dois desconfiados e molhados como pintos, embora tivessem procurado se proteger. Mas, a chuva era grossa, de encher um copo com um simples pingo. O padre João Maurício lhes disse da sugestão de Dona Amelinha. “É possível que, juntos, elevando nossos rogos ao Altíssimo, Ele nos possa ouvir. Afinal, estaremos sem divisões e sem malquerenças. É o que Deus quer dos homens”. O pastor hesitou por um átimo, mas concordou. Totoinho fitou os dois com olhos duros, surrado que era por ambos em suas prédicas. Porém, diante do quadro de grande aflição do povo todo, também aquiesceu. Por sugestão do padre, os três se ajoelharam e deram-se as mãos, que tremiam. Cada um, de início, fez a sua prece. Depois, começando pelo padre, cada um deles fez uma oração cadenciada, repetida pelos demais. Permaneceram de joelhos. Mãos dadas. Silêncio. O sino da Matriz soou as badaladas da Ave Maria. O sacristão Tito Perneta morava ao lado da igreja. Não deixou de badalar o sino nenhum dia, naquela hora, enfrentando em poucos metros de distância o furor das chuvas. Um trovão, pai de todos os outros, pareceu ter partido ao meio a abobada celeste. Foi um estrondo pavoroso.
De chofre, a chuva cessou. Era chegado o tempo de cuidar dos estragos e continuar a vida. Nunca mais, os três líderes espirituais de Cacimbinhas deram-se as costas. Se não se tornaram amigos, ao menos passaram a se respeitar.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE