Vila do Socó :: Por José Lima Santana
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
“O terreiro lá de casa, não se varre com vassoura...”. Eh, marimbondos de fogo cuspidos, cortando troncos e membros! Um vexame danado na Vila do Socó. A cabroeira do coronel Roberval Canuto veio como açoite de ventania braba, derrubando tudo. Política. Maldição de política. Quinze ou mais anos de baixo. Só foi o partido dele subir, para o sertão pegar fogo. O coronel não perdoou as traições de certos cabos eleitorais e de eleitores que tinham sido seus e bandearam-se para o partido do major Vivaldino. Além de tudo, este morrera há um ano, e o filho, Venâncio, não deu conta de ser chefe político. Frouxo, muito frouxo. Antes, a viúva, Dona Bertildes, tivesse assumido o partido, no Socó. Ela tinha peito para enfrentar o coronel. Eram até aparentados, ela pelo lado do pai, e ele, pelo lado da mãe. Parentesco lá por trás das nuvens, mas do mesmo sangue dos antigos donos do Arraial das Cobras, lá para os tempos do Império, nos seus começos, mil, oitocentos e pouco. No Império ou na República, eleição pouco valia. Mais, muito mais, valiam as armas, garantindo eleições a bico de pena, ou desfazendo-as. No sertão, urnas não tinham serventia. Valia mesmo era o que se escrevia nos livros de apuração. Ganhava quem detinha os livros e quem os escrevia. O resto era conversa para boi dormir.
“O terreiro lá de casa...”. Jorjão de Alípio queria, há muito, a patente de capitão. Posses tinha para comprá-la. Mas, precisava de um encosto, que lhe fizesse ir para riba. Acocorou-se aos pés do coronel. Muita gente duvidou que ele tivesse traído o major. Pois traiu. Logo ele, afilhado de fogueira, que era como se fosse de pia batismal. Largou o padrinho pela promessa de obter a cobiçada patente. O sobrinho do coronel, deputado federal, haveria de arranjar o papel-pago. Jorjão comandou o massacre na Vila do Socó. Morreram mais de trinta homens, seis mulheres, cinco adolescentes e uma criança. Esta, de bala perdida. A jagunçada do filho do major que sobrou, deu no pé. Melhor não ter um chefe do que ter um sem tintura de sangue nas veias.
O Socó virou um cemitério. Dava dó. As duas bodegas fecharam as portas. O luto cobriu quem sobrou e resolveu ficar. Também, ir para onde? Morador não era jagunço, para sair mundo afora. Os mortos seriam pranteados na labuta do dia a dia. Com o tempo, a situação se ajeitaria como desse. Noutras vilas e arraiais aconteceram coisas parecidas. Era o sertão desembestado pela fúria dos homens de posses e de armas alugadas. Capitães, majores e coronéis eram os barões da política e do crime.
“O terreiro...”. Joãozinho Cara de Índio não viu o enterro do pai e do irmão, pois estava no bucho da mãe. A mãe quis mudar-se para o Arraial do Tombo, nos confins do Vale do Aleixo, a quinze dias de boa marcha e em boas montarias. Mas, teve tutano para ficar e criar o filho, que seria o homem e a voz da casa. Sertão.
Muitas luas se passaram. Anos bons de invernos aquosos e anos de penúria, de miseráveis secas. O coronel Roberval Canuto morreu atacado por uma ferida braba que lhe comeu o rosto inteiro. Fedia como carniça enjeitada por urubus. Nesse tempo, a política tinha mudado de lado algumas vezes. Ao morrer o coronel, o seu partido estava de baixo. Nenhum grandola lhe prestou tributos. O sobrinho não era mais deputado. A cabroeira sob as suas ordens já tinha se espalhado. No dia do enterro, uns gatos pingados estiveram no casarão. Quem acompanhou o esquife até o cemitério teve que usar máscaras improvisadas. Mesmo assim, alguns vomitaram. Do massacre da Vila do Socó à morte do coronel, vinte e dois anos tinham se passado.
Um ano depois do coronel baixar à sepultura, o presidente da República seria deposto. Era o fim da Grande Guerra. Nova era seria instalada no País. Diziam. Nas cidades grandes, o que se sabia do sertão? Nova era... “O terreiro lá de casa...”.
1947. Joãozinho Cara de Índio cresceu forte, trabalhador. Cedo, tornou-se comboieiro. Atravessou várzeas e sertões transportando mercadorias. Prosperou. Jamais buscou confusão. Nunca falou em vingança. Cuidou da mãe até que ela morreu, nova ainda. Passou-lhe o vento. Só depois, Joãozinho deu-se em casamento, desposando a filha de Antero do Baixio, um dos homens mais ricos de todos os sertões. Maria Gabriela era filha única. Flor silvestre desabrochada sob os luares, faces morenas beijadas pelo orvalho. Prendada nos afazeres do lar. Tinha até algum estudo. Fala mansa, nunca alterava a voz. A mãe da moça, Dona Julinha, era natural da Vila do Socó. Um irmão dela fora uma das mais de trinta vítimas do coronel Roberval e do pretenso capitão Jorjão de Alípio, cuja patente jamais lhe chegara às mãos, embora por ela tivesse pago vultuosa soma em dinheiro. Jorjão, ele mesmo, sangrou Gabriel Matoso, irmão de Dona Julinha, enfiando-lhe um punhal enferrujado na jugular. “Morre, porco maldito”!
Maria Gabriela concordou em casar com Joãozinho Cara de Índio sob uma condição. O rapaz ouviu em silêncio. Olhou no fundo dos olhos da flor silvestre. Olhos que não piscavam, apenas faiscavam. Além de uma mulher cheia de encantos, era herdeira de incalculável fortuna. Não que ele fosse um pé-rapado, mas a moça podia nadar em ouro, se quisesse. Condição aceita.
“O terreiro lá de casa, não se varre com vassoura / Varre com ponta de sabre, bala de metralhadora”. As rixas, as desavenças, as guerras do sertão, com ou sem causa política, não cessariam da noite para o dia. Maria Gabriela teve esse nome de batismo por causa do tio e padrinho, Gabriel Matoso, sangrado como um porco por Jorjão de Alípio. Joãozinho Cara de Índio teria de sangrar o assassino do tio da futura esposa, na frente dela. Na Vila do Socó. No lugar em que o tio foi morto, bem na frente da bodega de Tonho de Sizino, que ainda existia, mas como outro dono. Jorjão fazia morada no Sítio do Meio, três léguas adiante. Joãozinho, sozinho, o arrastou até a Vila. Até a frente da bodega de Tonho de Sizino. Nunca foi de confusão, mas coragem jamais lhe faltou. Diante de Maria Gabriela, ele o iria sangrar como a um porco. Cumpriria a condição imposta. No exato momento em que levantou o punhal, a moça exclamou: “Deixe para lá! Um porco grita muito na hora de morrer. Solte o traste”.
“O terreiro lá de casa...”. Uns dias depois, Jorjão de Alípio, desmoralizado, enforcou-se.
*Padre, advogado, professor da UFS, Membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE