Aracaju (SE), 23 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 05/02/2024 às 10:11
Pub.: 05 de fevereiro de 2024

Irmãos de cantoria :: Por José Lima Santana

José Lima Santana*

Tuniquinho de Maneca Cego e Jojó de Maria de Isidoro de Malaquias saíram pelo mundo em cantoria de moda de viola. Repentistas azougados, bons por demais no galope martelado. Amigos, podia-se dizer, desde os tempos do uso de cueiros. Vizinhos de parede e meia. Cresceram na vadiagem dos terreiros de chão batido, nos banhos no açude do Padre, dando cangalapés, surrupiando frutas nos quintais e sítios alheios, namoricando com as menininhas na escola de Dona Virgínia de Alípio Boca Mole, vadiando nos becos e currais como calangos em delírios de acasalamento. Da escola pouco aproveitaram. Ainda na infância, danaram-se a imitar violeiros que se apresentavam na bodega de “seu” Vangelo, vez ou outra.  

Os dois amigos fizeram-se jovens e já dedilhavam toscas violas fabricadas por Vandinho de Juca de Maria Preta. Fizeram-se na vida como violeiros, de cantoria em cantoria, batendo pernas pelo mundo. Até cantar em Rádio da capital, eles cantaram. Sensação do Riacho do Boi ao pé da Serra do Maribondo, de Rancharia a Lagoa Seca, danando-se do Sertão ao Brejo, do Agreste às Matas Grandes. Não eram pessoas de belas feições, mas viviam bem aprumados, em ordem de pobres.  

Um namoro aqui, um trocar de olhos ali, mas nada que os fizesse perder tempo ou armar rancho definitivo. Não, nada disso. Eram bons viventes, ganhando lá seus trocados a cada cantoria. Não haveriam de prosperar com os trocados que ganhavam, mas não passariam fome. Até daria, com pouco tempo mais, de pensar, cada um, em levantar casa para mulher e filhos. Luxos não teriam, porém não rastejariam como cobras, beijando o pó do chão.  

Na quadra dos vinte e tantos anos para cima, os dois eram da mesma idade, diferença de uns poucos dias, da parição da mãe de um para a mãe do outro, deram de testa com duas morenas aprumadas, de ancas e encacho. Ali encostaram suas respectivas violas. As duas, Aninha e Vitória, moravam no mesmo Beco do Cangaleixo e eram até um pouco aparentadas. Afeitas à arte dos bordados em ponto de marca e ponto de cruz, como eram afeitas muitas mulheres dali metidas, ano após ano, nos bordados ou nas rendas de almofadas de bilros. Portanto, moças prendadas.  

Foi numa cantoria na bodega de Chico Pavão Sem Rabo, antigo jagunço do coronel Tibúrcio Guedes, que, de tanta miséria praticada, morrera comido por bichos, que os dois conheceram Aninha e Vitória. Já quebrado nos anos, Chico Pavão comprou de Pedro Carpina a bodega de prateleiras vazias e balcão imundo. Ele ajeitara tudo, tornando a bodega de maior valia nas redondezas.  

Tempo muito não decorreu, e eis que os dois amigos se deram em casamento às suas pretendentes. No mesmo dia, na mesma Capela. Uma festa só. Famílias e amigos se juntaram numa animação que varou a madrugada do sábado para o domingo. Felizes, morariam na mesma povoação onde nasceram, Tuniquinho e Jojó. 

Continuaram cantando juntos, violando no repente e no galope martelado. Em vaquejadas, corridas de mourão, festas de casamento e batizados, leilões e feiras, Tuniquinho e Jojó davam conta do recado, de motes maliciosos e rimas aprumadas. Encantavam a todos. Tuniquinho era, de batismo, Antônio José. De pia batismal, Jojó era João Felipe. Nasceram os filhos de ambos, dois meses um atrás do outro. O filho de Tuniquinho chamou-se João Felipe; o de Jojó, Antônio José. Homenagem de um pai ao outro e vice-versa. Ambos padrinhos. Compadres e comadres viviam na mesma camaradagem, na mesma amizade, como irmãos e irmãs.  

Dizia-se que o diabo não podia ver gente em demasiado achegamento. Soltava seu tridente a cutucar uns e outros. Um dia, por causa de uma galinha, as duas comadres, Aninha de Jojó e Vitória de Tuniquinho, desentenderam-se, agoniaram-se. A galinha de uma deixou titica na calçada da casa da outra. Não era a primeira vez que isso acontecia, de lado a lado. Todavia, naquela manhã, perto da hora do cão, que é o meio-dia ou a meia-noite, as duas comadres, incitadas por um vizinho de maus bofes, vomitaram a bílis. Um destempero. A pouca vizinhança assanhou-se, estupefata. Nunca que as duas trocaram um palavreado fora do eixo. Mas, naquele instante, foram às vias de fato. Puxões nos cabelos, tapas nas caras, vestidos rasgados. Assustadas, as duas crianças estatelavam-se de tanto chorar. Os maridos pelo mundo, cavando o pão de cada dia. Caras arranhadas a unhas, a turma do “deixa-disso” separou-as.  

Dois dias depois, Tuniquinho e Jojó chegaram em casa, após seis semanas pelo mundo, em cantorias. Uns bons tostões nos bolsos. Alegres como era do seu viver. Cada um em sua casa ouviu o que lhe foi dito. Uma versão para lá, outra para cá. Desencontradas. O fogo da discórdia foi aceso nos bofes de cada um. Impelidos pelo enxofre do demo, foram tomar satisfação, um ao outro. Armaram-se. Discutiram. Salivaram baba de mandacaru.  

No calor da discussão, Tuniquinho sacou do revólver. Jojó fez o mesmo. Os vizinhos que acorreram às portas, recolheram-se. Ouviram-se dois tiros.  

Quando as armas foram sacadas, eis que os dois filhinhos, inocentes, brincando debaixo de uma mangueira do outro lado do arruado em curva, alheios a tudo e contra a vontade das mães, pois em inocência de criança não se punha cabresto, foram atacados por porco do mato. Os dois tiros foram, ao mesmo tempo, certeiros, dando cabo do animal.  

Cada um foi cuidar de sua família, apaziguar sua mulher, cada um chamando a sua à razão. Enfim, em pouco tempo, as duas comadres voltaram às boas. Toniquinho e Jojó eram amigos. Irmãos de cantoria. Irmãos de coração.

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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