Pega Visão: projeto envolve alunos para discutir sobre vulnerabilidade social
Na transição entre a adolescência e a fase adulta, as incertezas ficam ainda mais aparentes, as dúvidas são frequentes e as mudanças no corpo e percepções da vida causam, muitas vezes, confusões nem sempre claras. Quando se trata de adolescentes de classes mais carentes, outros fatores de vulnerabilidade social se somam aos já tão comuns conflitos dessa fase humana.

Pega Visão: projeto envolve alunos para discutir sobre vulnerabilidade social (Foto: Marcelle Cristinne/ PMA)
Foi para lidar com essas questões que a Prefeitura de Aracaju, por meio da Secretaria Municipal da Educação (Semed), iniciou, em 2018, o Pega Visão, projeto voltado a alunos do 6º ao 9º anos de escolas da rede municipal. Inicialmente conhecido como “Papo de Menina”, o projeto foi modificado no decorrer de sua execução pela própria necessidade dos alunos.
À época, o Papo de Menina foi idealizado por Cláudia Mendonça, então professora da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Sérgio Francisco da Silva, profissional que identificou a necessidade de tratar sobre temas específicos da adolescência, em especial com as meninas.
“Elaboramos algumas temáticas, como gravidez, métodos contraceptivos, ISTs, falávamos sobre autoestima, autocuidado, isso junto com a SMS [Secretaria Municipal da Saúde]. No desenvolver dessas atividades, no entanto, muitos meninos demonstraram o interesse em participar das conversas, assim, o Pega Visão veio para ampliar essas temáticas e o público-alvo, envolvendo, portanto, também os meninos”, conta Cláudia.
Levado para outras escolas, já com a nova roupagem, foram inseridos temas como violência, automutilação e até mesmo projeto de vida, quando outras pessoas passaram a se engajar no projeto, envolvendo, desta forma, não só professores, como também assistentes sociais, psicólogos e estagiários.
“Hoje, o projeto não tem mais a finalidade de conversar. Sempre é a mesma equipe para criar laços com os alunos e alunas para que estes tenham essa janela de oportunidade para compartilhar com a gente algo que esteja ocorrendo em sua realidade. Foi quando nos chegou casos de violência e até de tortura. Ele tinha esse objetivo de criar uma rede de confiança, mas o volume de casos nos chamou muito a atenção. Assim, junto a outros órgãos, fomos dando os devidos encaminhamentos”, explica a coordenadora de Políticas Educacionais para a Diversidade (Coped) da Semed, Maíra Ielena.
Passados quatro anos desde a formação do projeto, já familiarizados e engajados, os alunos da Emef Sérgio Francisco se reúnem, inclusive, durante as férias escolares. Um dos professores participantes do Pega Visão, Anderson dos Santos foi responsável por fazer um levantamento que apontou dados preocupantes.
“Realizamos uma pesquisa com 288 meninas e chegamos ao número de 58 que se automutilavam. Encaminhamos todos os casos, via Cras e Caps, e para atividades esportivas dentro da escola. Antes da pandemia, reduzimos esse número para 12. Com a pandemia e, posteriormente o retorno das aulas, percebemos muitas situações de ansiedade e, algumas meninas voltaram a se cortar. Chegamos a realizar encontros virtuais, mas sentimos a necessidade dos encontros presenciais. Assim, conseguimos reunir, a cada semana, cerca de 30 jovens, sendo que, nem todas praticam automutilação ou estão convivendo com ansiedade ou depressão, mas fazem parte para, justamente, formarem a rede de apoio tão importante para a recuperação daqueles que estão sendo assistidos. Hoje, os alunos têm um sentimento de pertencimento desse projeto, tomam para si e são instrumentos de conexão”, ressalta Anderson.
Para a coordenadora da unidade de ensino, Fabiana Araújo, o Pega Visão favorece a criação de vínculos. “E através desses vínculos, trabalhando em rede, chegamos ao resumo disso com as palavras ‘parceria’, ‘coletividade’ e ‘acolhimento’. É um lugar para oferecer alternativas. Quando não se tem um equilíbrio emocional, dificilmente o aluno vai aprender com qualidade. Além de ensinar a matemática, o português, é preciso que a escola também trabalhe a questão socioemocional, desde os primeiros anos”, frisa.
Identificação e acolhimento
Com problemas em casa, A.C. J. S, de 16 anos, se viu no dilema de precisar de ajuda e, ainda, servir de colo para as amigas. Ela procurou ajuda e encontrou nos professores o apoio que precisava.
“Tomei o projeto para mim e quis chamar outras meninas da escola. Quando começou a caminhar, os meninos quiseram participar, o que tem sido muito bom. Eu sempre fui muito mimada pelos meus pais, até que aconteceu algo muito grave na minha vida e, com 11 anos, tentei me matar, além de me cortar. Encontrei ajuda dentro da minha escola e, hoje, me sinto motivada, já conseguido enxergar coisas boas. Encontrei uma segunda família, e isso tem sido sentido por meus colegas, também”, desabafa a estudantes que sonha em ser delegada.
C.S.S, 16 anos, é um dos mais novos nos encontros do projeto. Para ele, “meninos também sentem e precisam desabafar". "Menino tem depressão, menino tem dificuldades de lidar com as coisas, menino também é ser humano e precisa de ajuda, por isso quis participar do projeto, para ver se consigo me sentir melhor, e já no primeiro momento, me senti acolhido”, afirma.
M.F.S.S, de 16 anos, se viu com depressão, automutilava-se e chegou a tentar tirar a vida por três vezes. Hoje, mesmo com o sorriso escondido por trás da máscara, expressa esperança através do olhar.
“Eu estava passando por muitos problemas e me sentia muito só. Agora, já sinto as mudanças até em casa. As brigas já diminuíram muito e não sinto mais vontade de fazer besteira. Conversar com outras pessoas e perceber que os outros também têm problemas e que, juntos, podemos nos ajudar, dá um fôlego e faz com que a gente mude a visão das coisas. Gosto de ajudar as pessoas, mas sei que, primeiro, preciso cuidar de mim”, declara M.F.
Y.S., 16 anos, participa do projeto há pouco tempo e garante que as discussões do grupo têm sido importantes. “De alguma forma, é bom se reconhecer nos outros, ver que todos têm problemas, mas que podemos nos ajudar. Agora, estou indo para outra fase da minha vida, o ensino médio, mas pretendo continuar frequentando o grupo para continuar a pensar em coisas boas. Vou buscar e vou conseguir ser advogada”, frisa.
A coordenadora de Políticas Educacionais para a Diversidade acrescenta que o projeto não se trata da execução de palestras, mas conversas para criação de vínculo e suporte. “Esse modelo de palestra é um formato esgotado. Temos várias pesquisas que mostram que o efeito rebote é grande. Desde a redemocratização do Brasil que a escola não é mais um espaço para falar pura e simplesmente sobre disciplina escolar", salienta.