Aracaju (SE), 28 de novembro de 2024
POR: (*) José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 14 de março de 2015

Testa de arrombar navio

A testa de Zé Pingo era proeminente. Parecia antecipar-se ao resto da cabeça. Era, sim, uma “testona” danada. Ou, no melhor vernáculo, uma testaça. Ele era mais velho do que eu uns cinco anos. Quando se jogava peladas no improvisado campo da Praça João Ventura todo mundo tinha medo de subir para cabecear a bola, se ele subisse junto. Uma testada dele seria como uma cabeçada de carneiro. Fatal. Mas ele era um bom companheiro, líder das brincadeiras de “mãos ao alto”, em que os meninos imitavam cenas dos filmes de faroeste, das disputadas linhas de futebol com bola de borracha, das alegres fintas de piões, que a gente os comprava a Vangelino do Barreiro, que ficara maluco após ser espancado na cabeça, nunca se soube por quem. Ele bebia e quando estava ébrio, sentava numa calçada qualquer e ria quase sem parar. Quando via alguém se aproximando, dizia: “Ô arrepiado!”. E ria. Vangelino era, porém, um exímio artesão. E fazia mil e uma utilidades com a madeira.
 
Líder era também Zé Pingo nos folguedos de dar cambalhotas nas águas do tanque, vizinho ao açude. Neste, as mulheres lavavam roupas. Naquele, os homens tomavam banho e lavavam os animais de montaria. Mas, eu falei em cambalhotas? Ora, bolas! Cangalapés. Era assim que as pessoas diziam. E líder igualmente ele era na “arte” de surrupiar frutas nos sítios e quintais alheios. Na adolescência, beirando a juventude, ele também liderava as idas às casas de ponta de rua, que eram casas de pobres mulheres que vendiam o que lhes restava do próprio corpo consumido por anos de sofrido mercadejar. Pobres coitadas, que ensinavam aos meninos a fazerem “coisa feia”, como se costumava dizer. Mulheres excluídas da sociedade e da religião.
 
Dona Filó, mãe de Zé Pingo, recebia um volume acentuado de reclamações. “Zé Pingo fez isso, Zé Pingo fez aquilo”. Todavia, eram só umas traquinagens próprias da idade. Nada demais. Naquele tempo, não havia drogas, a não ser um ou outro cigarro que se fumava escondido e em conjunto, cada um dando uma tragada. Não havia furtos da parte da meninada, salvo os “assaltos” às fruteiras. Não havia falta de respeito aos mais velhos. A autoridade dos pais não era contestada. E ainda por cima, havia as aulas de catecismo na escola, onde se ensinava à meninada o amor a Deus sobre todas as coisas, o conhecimento dos dez mandamentos, dos pecados capitais e das rezas básicas, como o padre-nosso, a ave-maria, o credo e a salve-rainha, além de belas e comoventes histórias bíblicas, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Instrução para o que era bom não faltava. Quanto a tirar frutas dos sítios e quintais alheios não se constituía em pecado, crime ou falta grave. Era algo corriqueiro, embora alguns proprietários encrencassem para valer e botassem a meninada para correr. E quanto às primeiras estripulias carnais, bem, isso era da natureza das pessoas, como dizia o mestre Tertú, ferreiro e avó de Zé Pingo. Pecado, porém, na visão do Cônego Miguel Monteiro Barbosa, que bradava em alguns sermões: “Ai dos fornicadores!”. Menino de calças curtas, eu lá sabia o que era fornicador?
   
Zé Pingo. Por que o nome? Porque ele nascera franzino, um pingo de gente, e assim crescera. Acabou virando um varapau de testa saliente. Um verdadeiro “canela seca”. Porém, quando era preciso, ele se mostrava valente como nenhum outro menino daquele tempo. Lembro-me de quando um valentão das bandas do sertão, segundo se apurou, apareceu no tanque para dar de beber a uma tropa de burros de carga. O tal sujeito, fazendo uso de um relho com ponta revestida de chumbo, cismou de botar uns oito meninos para correr, que estavam nadando nas águas do tanque. Tinha mesmo acertado dois dos meninos com a ponteira cortante do relho de estalar. Aquele, contudo, não era o dia de sorte do valentão tangedor de burros. A razão? Ora, Zé Pingo era um dos oito que ali estavam. Sendo o rei do cangalapé, e ao ver os dois irmãos açoitados, ele deu uma voadora na caixa dos peitos do valentão, que caiu na beira d’água, ciscando como uma galinha velha e choca. Tomou-lhe o relho e lhe cobriu de lapadas. Incontáveis. A camisa do sujeito ficou em petição de miséria. Juntos, os meninos espantaram os burros e botaram o valentão para correr, açoitando-lhe com galhos de ingazeira, que era árvore por ali abundante, mas já não é mais. O relho de ponteira de chumbo? Ficaria nas mãos de Zé Pingo, como um troféu. Naquele tempo, os meninos aprendiam muito cedo a ser homens. Como se dizia no vulgo, a precisão fazia a ocasião.
 
Dona Filó, mãe de Zé Pingo, tinha uma vizinha chamada Domitila, que era mãe de três filhas: Florisa, Florinete e Florina. Todas elas eram sardentas. Mas não eram feias. Eram, ao contrário, graciosas. Uma delas enfeitiçou Zé Pingo. Feitiço brabo, desses de desancar qualquer cabra. O problema era que a feiticeira parecia não dar bolas para ele. Melhor dizendo, ela não o enfeitiçara: ele se deixara enfeitiçar. Sem mais nem menos. Caprichos de um músculo incompreensível, que se chama coração. E peço vênia a quem ousa ler este escritozinho para rememorar os seguintes versos de Menotti Del Picchia, no poema “Juca Mulato”, uma das pérolas da poesia brasileira, no meu pobre entendimento: “Ter a um sonho de amor / o coração sujeito / é o mesmo que cravar / uma faca no peito. // Esta vida é um punhal / com dois gumes fatais: / não amar, é sofrer; / amar, é sofrer mais”.
 
Pobre Zé Pingo. Adolescente. Ainda cheirando a mijo, como diziam algumas mulheres de ponta de rua. Apaixonado. E o pior, sem ser correspondido. A menina sardenta jamais teve olhos para ele, que passou a viver pelos cantos da casa, amolengado. O coração sendo ferido devagarzinho. A cada dia, uma punhalada. Uma agonia. Um sofrimento. De tudo isso, eis o pior: ele jamais tivera coragem para confessar o que sentia por Florina, a mais nova das três irmãs. Amor platônico. O mais temível dos amores. Amor que é, e não é ao mesmo tempo. Amor unilateral, por isso mesmo o pior dos amores. Amor que nem Eros dava jeito. Um dia, porém, ele criou coragem e mandou um bilhete para Florina, no qual estava escrito com sua letra garranchenta e errática: “Eu ‘qero’ ser ‘fêliz’ ‘comtigo’. Mim responda”. Ah, Zé Pingo, que, hoje, eu não sei por onde anda: melhor teria sido não mandar bilhete nenhum! Bem melhor teria sido passar sem aquela resposta, que acabaria por despedaçar o que restava do seu coração afoito e sofrido.
   
A resposta veio na forma oral. Florina, cruel, disse à irmãzinha de Zé Pingo: “E eu quero namorar um sujeitinho da testa de arrombar navio?”. Como Val, a irmã menor, lhe dera a resposta na presença de outros meninos, que foram, naquela tarde, tentar arrancar o amigo de casa, a resposta correu pelo bairro. E foi, então, que, na boca dos descarados, e pelas costas dele, o apelido mudou de Zé Pingo para Testa de Arrombar Navio.
   
Tempos depois, eu lembrei que assistira a um filme sobre guerras romanas em que as naus dos filhos de Rômulo e Remo tinham uma espécie de aríete (cabeça de carneiro), que destroçava as naus inimigas. Provavelmente, Florina também o assistira. Afinal, as sessões das segundas-feiras, no Cine São José, eram cheias da meninada do meu bairro. E as três irmãs eram frequentadoras assíduas, acompanhadas do irmão mais velho, Filadelfo, que desposaria uma irmã de Zé Pingo.


Publicado no Jornal da Cidade, edição de 14 e 15 de dezembro de 2014. Publicação neste site autorizada pelo autor.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

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