O canto de Araripe Coutinho
O poeta Araripe Coutinho tomou o barco que o haveria de levar “ao frio silêncio”, como dissera o poeta alemão Friedrich Adolf Axel Detlev von Liliencron (1844-1909), no poema “Calefrio Aquerôntico”, em tradução de Manuel Bandeira. Eu soube do passamento do amigo quando, na manhã da terça-feira, dia 9, estava para embarcar no aeroporto de Recife, de volta a Aracaju, após o feriado de 8, isto é, do dia consagrado à Padroeira de Aracaju, Nossa Senhora da Conceição. Aliás, no sábado, dia 13, dia de Santa Luzia, o poeta, carioca de nascimento e sergipano de alma e coração, completaria 46 anos. Dias antes do seu passamento, através do Facebook eu lhe mandei duas mensagens, assim que soube do seu estado de saúde, internado que ele estava no Nestor Piva. Surpreendeu-me, pois, a notícia de sua morte.
Araripe era irrequieto. Surpreendente. Irreverente. Como pessoa, como poeta e como comunicador. Viveu ao seu modo. Ao seu modo, enfrentou a vida. Mostrou a cara. Fez estripulias. Incomodou alguns, com o seu jeito de ser e com o seu canto sem amarras. Querido por muitos, não bem visto por alguns. Isso lhe incomodava? Não sei ao certo, mas é possível que não. O que sei é que eu tive por ele grande apreço. Um poeta que alguns não compreenderam, mas que muitos apreciaram. E que eu, desde cedo, reverenciei. A tal ponto que, ainda no corpo do seu terceiro livro, “Sede no Escuro”, publicado em 1994, pela Editora João Scortecci (São Paulo), que reuniu os poemas do primeiro livro e outros inéditos, escrevi o seguinte texto, intitulado “Um porto sob as estrelas”, nas páginas 88/89:
Araripe Coutinho é um jovem irrequieto, um poeta irrequieto. Está sempre buscando... E o caminho do qual ele se serve para as buscas constantes é o caminho da poesia. A poesia de Araripe, que, em livro, estreou com “Amor sem Rosto” (1990), passando por “Asas da Agonia” (1991), e tendo sequência, agora, com “Sede no Escuro”, reflete, no conjunto, a mensagem de quem não teme desnudar-se nem desnudar. É poesia que freme, que queima, que contagia.
São marcas presentes no seu poetar: o erotismo, a angústia, as dores do mundo, mas também o aconchego, a ternura... O seu canto é atual. Como bem disse Núbia Marques, Araripe “é poeta dos nossos dias”. Poeta sem compromissos formais. O seu verdadeiro compromisso é pôr a poesia nas mãos do leitor. Nas mãos? No coração e na mente. Os seus poemas são chamas que ele acende para vê-las queimando pudores e queixumes, isto é, para vê-las devorando a hipocrisia do mundo. A obra poética de Araripe chega a escandalizar? Oxalá assim seja! Os lúcidos estão sempre escandalizando: “As galheta sobre o altar / O círio aceso / Eu de joelhos / Comungando da cólera de Deus e do diabo”, ele verseja. Tais versos, por certo, escandalizam alguns.
O poeta tem sede no escuro. Sede de amor e de amar, de percorrer caminhos novos, iluminados, pois a poesia é luz que irrompe no escuro, que clareia as trevas das consciências humanas. Mas o poeta também busca respostas para as suas indagações mais íntimas, nos momentos de angústia e incerteza. Diz ele, por exemplo: “Por que haveremos de continuar / nós que estamos / tão cansados de rever / os barcos e as náuseas?”. Todavia, ele continua. Continua porque o poeta vive para buscar, para dar do seu canto e para doar-se. Barcos e náuseas são partes do mar e do ato de navegar. E o poeta Araripe Coutinho navega por mares revoltos ou de calmaria, na incessante procura de um porto sob as estrelas. As estrelas são as guias mestras dos poetas. Dos poetas que, como Araripe, ousam exclamar: “Deixo para amanhã o despertar / Do outro. E enquanto dormes / Eu canto”.
Eis, assim, o texto que eu escrevi 20 anos atrás, saudando um poeta que viveu em constante busca. Os caminhos que ele percorreu, na vida pessoal, profissional ou literária, foram vários. Dissolutos ou não. Infindáveis caminhos. A sua poesia foi profana, iconoclasta, com laivos de sacralidade, sim(bólica), dia(bólica)? Foi, simplesmente, poesia.
Certa vez, perguntaram ao poeta Mário Quintana o que se deveria fazer para ser poeta. Ele respondeu: “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever”. Araripe foi um leitor voraz. Ele leu muitos e bons poetas. Nacionais e estrangeiros. Leu muito e muito escreveu. Ele produziu versos e poemas de cunho literário menor, como sói acontecer com qualquer um. E escreveu versos e poemas de espantar pelo estilo, pela linguagem empregada, pela ousadia. Em “Lírica” (“Sede no Escuro”) o poeta escreveu algo que, na minha compreensão, ele mesmo jamais pôde superar: “Quem se lembraria / de trazer-me um pêssego / numa tarde de angústias?”. Forte. Contundente. Melancólico. Dilacerante.
Não foi numa tarde de angústias, mas, sim, numa noite, numa madrugada, quem sabe, de desalento, de dor, de agonia, que ele se foi sem que alguém lhe trouxesse um pêssego. Vida breve...? No livro “Como Alguém Que Nunca Esteve Aqui”, de 2005, ele escreveu: “Viver não acaba nunca”. Eis a ideia do eterno. No livro “Passarador”, de 1997, ele disse: “Meu verso morreu de fome / morreu de amor / morreu de sede”. De que morreu o poeta Araripe Coutinho? De fome de amor? De sede de poesia? Como é o amor? No mesmo “Passarador” ele responde: “O amor é violáceo como a morte”.
O poeta que se foi, mas que não se foi completamente, vez que a obra há de ficar e perdurar, tinha a correta compreensão da dimensão da poesia: “As dores dos homens não cabem no poema” (Poema “Entre o Voo e o Pouso”, do livro “Asas da Agonia”). A poesia não contém o mundo. Não contém os homens. Não pode conter as suas dores imensas. O poeta também pareceu ter sempre a exata dimensão da própria vida. Vida que passa. No poema “Tempo de Silêncio” (“Asas da Agonia”) está dito: “Quando veio o tempo de silêncio / Eu já estava preparado para o sacrifício”. E no poema “Meia Luz” (“Asas da Agonia”) ele vaticina: “Na meia luz meus olhos fecham sós”. Os olhos do poeta se fecharam. Sós. No poema “Para um poeta é difícil” (“Sede no Escuro”) ele se antecipou ao tempo: “Para um poeta é difícil morrer em meio a todos / Melhor no silêncio, numa ponte deserta”. Até parece que ele sabia. Salve poeta!
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 21 e 22 de dezembro de 2014. Publicação neste site autorizada pelo autor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
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