Aracaju (SE), 28 de novembro de 2024
POR: (*) José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 14 de março de 2015

Cartas de Jackson de Figueiredo e Araripe Coutinho

Foi-se o tempo das cartas. Sobre isso eu já escrevi, no ano passado. Mas houve um tempo em que as cartas eram guardadas e, no caso de escritores, publicadas em livros. A primeira carta que eu li de um escritor foi do filósofo sergipano Jackson de Figueiredo (1891-1928). Intitulada “Carta à Irmã”, essa carta, extraída do livro “Correspondência”, 3ª edição aumentada, página 259, consta do livro “Admissão ao Ginásio”, do qual eu me servi em 1966, no 4º ano primário, no Educandário Nossa Senhora das Dores, regido pela professora Maria Menezes Góis, mais conhecida como D. Menininha, de saudosa memória. Essa carta, datada de 22/23-11-27, Jackson a enviara do Rio de Janeiro. Eis:
   
Querida Anaíde: Recebi sua carta de 11 do corrente e não preciso dizer-lhe com que alegria. Sim, mana, eu também jamais esquecerei “aquelas ligeiras horas de S. Cristóvão”; em momento tão turbado e doloroso de minha vida, creio que foi mesmo a única alegria verdadeiramente grande e verdadeiramente pura, que então tive...
   
Todos os meus pequenos estão em casa, inclusive a Regina, uma mocinha. Tãotão, esta é um vagalume que brilha em pleno dia. É um raiozinho de luz e de espírito, chega a ser um tormento do meu coração. O Luís, o Sr. Dom Luís é um sujeito inteligente e bom, mas de ideias abstrusas. Ainda hoje, pela manhã, apresentou-me consertado o meu relógio. Não tinha uma peça no lugar. Avalie o lucro do conserto. Não tive coragem de ralhar com ele. Aliás, mana, sou, definitivamente, a negação do pai de família, e se, o que é raro, consigo ter um gesto de energia, isto é para mim mais esgotante que com polêmicas de jornal.
(Segue-se uma linha tracejada).
   
Diga ao Mesquita que não esmoreça com a moléstia. Estive gravemente doente mais de seis meses. Ainda não estou bom e sofrendo um tratamento bastante doloroso. Mas, até a hora final, hei de olhar estas coisas como verdadeiras depurações. Adeus, querida Anaíde!
   
Beije por nós os pequeninos, e abrace o Mesquita (se quiser, beije-o também), abrace-o com a maior amizade.
Laura a beija como se beija a irmã querida do Jackson e ele próprio a beija muitas vezes com saudosa ternura.
Jackson.
Hei de anotar que a correspondência de Jackson (apenas uma parte dela) foi publicada postumamente, em 1946, com reedições posteriores. Convertido, ele se tornaria grande defensor do catolicismo conservador, e foi o inspirador de ações laicas de sucesso. Segundo Alfredo Bosi, “a humanidade e o estilo vigorosos garantem a Jackson de Figueiredo um lugar entre nossos grandes prosadores”.

Quem, entre nós, também gostava de escrever cartas, já no tempo final das cartas, era o poeta Araripe Coutinho, que há pouco nos deixou. Sempre que ele viajava, enviava-me cartas. Revolvendo documentos e papéis avulsos, nos dias do fim do ano, eu reli uma dessas cartas, de quando ele passava uma temporada com a escritora Hilda Hilst, no interior de São Paulo. E quando ocasionalmente releio essa carta, especialmente essa, eu me comovo, por vários motivos. Vamos à carta:


Casa do Sol, quase primavera de 1993.

Prezado amigo poeta José Lima:

Não é necessário lhe dizer que todas as coisas estão mortas. Afinal, 111 no Carandiru, 10 na Candelária, 21 no Vidigal, e em nós, quantos?
Lembro-me do seu lançamento e espero realizar um aqui, na UBE, e no Terraço Itália. É só você ligar para mim.
Por enquanto, tenho escrito muito e me preparado para o meu lançamento, que, segundo o Massao Ohno sai mesmo este ano. Em se tratando de um japonês com o nome dele, vale a pena esperar.
Por outro lado, procuro me revigorar, já que na terra dos cajueiros e papagaios não é fácil, principalmente quando você tem uma sensibilidade fantástica e um talento singular. Enfim.

Espero que tudo tenha corrido bem consigo no Rio, e que os contactos tenham sido dos mais proveitosos. A poesia é mesmo uma estrada espinhosa a se seguir.

Peço-lhe mais uma vez, que converse com Almeida Lima, que diz gostar muito de mim, para que ele me consiga alguma coisa na PMA; não posso ficar neste desespero, neste vazio, enquanto a mediocridade de tantos grassa como grama. Mesmo. Por favor. Sou um poeta. Volto agora em outubro e não dá mesmo para sobreviver das sobras dormidas do pão – como canta Cazuza.
O prof. Ariosvaldo disse-me por fone ter gostado demais do seu livro e disse-me que ia fazer um artigo. É muito importante, Zé Lima, manter um contacto com ele. É um sábio perdido nestas plagas sergipanas.
No mais, desejo-lhe toda sorte e sucesso. E quando eu voltar aguarde novos lançamentos. Com toda luz que for possível e impossível.

Grato sempre, amigo-irmão.
Araripe Coutinho.

Algumas observações: 1) O meu livro, sobre o qual ele fala, é o romance “A Morte Fora de Hora”, lançado em Aracaju, em agosto de 1993, e, no mesmo mês, no Rio de Janeiro, durante o I Congresso de Literatura das Américas, promovido pela UFRJ, e que teve a participação de escritores e professores de Literatura do Canadá à Argentina, além de Portugal e Itália. 2) Massao Ohno (SP) deveria editar o livro “Sede no Escuro”, do nosso saudoso poeta, mas que acabou sendo editado, em 1994, pela Editora Scortecci. 3) Araripe refere-se ao acadêmico Ariosvaldo Figueiredo que, deveras, escreveu um artigo sobre o meu romance, que muito me sensibilizou, sob o título “José Lima Santana na Boca do Sertão”, publicado no jornal “O Estado de Sergipe”, edição de 02 a 08 de outubro de 1993, que circulou em Aracaju entre 1993 e 1995. No artigo, permitam-me os leitores, disse, por exemplo, o professor Ariosvaldo: “José Lima Santana pensou em escrever romance; na verdade fez história e sociologia... Na linha do mais sadio nativismo, José Lima sente que o universal passa pelo nacional, ponto de partida do internacional, tal como visualizava Gramsci”. Foi exatamente Araripe Coutinho quem fez a aproximação entre mim e o saudoso acadêmico. 4) O poeta Araripe acabaria nomeado pelo prefeito José Almeida Lima para a direção da Biblioteca Municipal Clodomir Silva.

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 18 e 19 de janeiro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

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