Aracaju (SE), 01 de novembro de 2024
POR: (*) José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 14 de março de 2015

A paixão de Tânia

Castelinho amava Tânia. Mas Tânia só tinha olhos para Alfredo de Pedro Castelo. Este, Pedro Castelo, era primo do pai de Castelinho. Ou seja, era uma “castelada” só. Sim, até porque Tânia era sobrinha de Pedro, irmão de sua mãe. Ela era, então, prima carnal de Alfredo e prima em segundo grau de Castelinho. Uma confusão como nem eu seria capaz de criar melhor nos causos que escrevo. E a “castelada” se esparramava por uns dez dos quase trinta povoados do município, além dos que já moravam na cidade, principalmente no subúrbio Saquinho, depois do Pinga-Fogo e antes da Gameleira. Isso é apenas para situar o leitor que não conhece a região de Timbira.
   
Por coincidência, Castelinho, Tânia e Alfredo tinham a mesma idade. As três mães receberam a visita da cegonha (cegoinha danada que trabalhava!) no mesmo mês de maio. Maio era, no passado, um mês de muita parição. Razão? Somente uma me vem à mente: de agosto a maio decorriam nove meses. E agosto era – e é, quando o inverno é bom – o mês do frio, naquelas bandas. E no friozinho, os corpos se enroscavam. Nove meses depois, berços e redes embalavam bebês. Da mesma idade, estudavam os três na mesma escola, na mesma sala de aula. E eram, além de parentes, bons amigos. Castelinho amava em silêncio. Aguardava uma boa oportunidade para se declarar a Tânia. E esta não sabia o que fazer para chamar a atenção de Alfredo, que, pelo andar da carruagem, parecia que ainda não olhava com olhos pidões para ninguém, nem para Margarida, da 7ª série, que quase não o largava. Eram apenas bons amigos. E vizinhos. Os três parentes eram da 8ª. Como visto, era o desabrochar das paixões juvenis. E por Tânia, um bando de meninos arrastava asas. E um bando de meninas sonhava com Alfredo, o mais bonito da escola, segundo elas comentavam. Quanto a Castelinho, baixo, mas não muito, meio gordinho, sorriso sempre aberto, o mais estudioso da sala. Só tirava notas acima de 9. Tânia era aluna regular. E também regular era Alfredo. Ele gostava mesmo era de desenhar. Desenhava de tudo, mas tinha uns desenhos que ele não mostrava a ninguém.
   
Nos últimos meses, Alfredo aprendeu a desenhar rostos, a fazer retratos, usando grafite. Servia-se de fotos 3x4, principalmente das meninas que ele mais gostava. Fotos tiradas por Zé Retratista, na Rua da Conceição, perto do antigo vapor de algodão de Juca de Dominguinhos. E ele dava os desenhos de presente ou os fazia por encomendas pelas quais cobrava. Outra atividade do gosto de Alfredo era organizar festas na escola. São João? Dia das mães e dos pais? Gincanas? Ele estava à frente de tudo, ajudando a direção da escola. E Margarida era, por assim dizer, o seu braço direito. Daí muita gente achar que, se eles não eram namorados, ainda haveriam de ser. Eram grudados, para o temor de Tânia. Em casa, o agarramento de Alfredo com Margarida era visto com simpatia pelos pais dele, que eram compadres dos pais dela. Quanto a estes, sobre tal agarramento, não se sabia dizer. Verdade era que, à boca miúda, a mãe de Margarida dizia coisas de Alfredo. Porém, na rua onde eles moravam a fama de linguaruda da mãe de Margarida, D. Lucinha de Fausto, era voz corrente.
   
Tânia jurou a si mesma que acabaria com a sua agonia, que tiraria Alfredo das garras da magricela Margarida, custasse o que custasse. E haveria de ser na semana da Festa da Padroeira. No baile do Recreativo. Como os pais de Margarida não a deixavam frequentar os bailes, Tânia estaria livre, leve e solta para dançar com Alfredo, o garoto que mais gostava de dançar. E o baile daquele ano seria com a orquestra “Los Guaranis”. A melhor do estado. Tânia era tímida. Linda, modelada com esmero, mas tímida. As irmãs a chamavam de tabaroa. Nunca tivera um namoradinho na escola ou fora dela. Bem, naquele tempo não era como hoje em que as garotas e os garotos começam a namorar, a bem dizer, ainda usando fraldas. Tânia queria namorar o primo Alfredo e haveria de achar coragem para dizer isso a ele. Qual a reação dele? Ela temia ser rejeitada pelo único garoto que enchia os seus belos olhos castanhos. Fez até promessa para Santo Expedito, o santo de devoção de sua mãe, que era responsável, ano após ano, pela liderança da noite dedicada às famílias, na Novena da Padroeira, na festa de novembro. Festança, aquela de Nossa Senhora. A promessa feita era para acender uma dúzia de velas aos pés da imagem do santo, que sua mãe mantinha em ornamentado nicho, no quarto do casal. Pelo que ela sabia Santo Expedito jamais deixara sua mãe na mão, embora D. Constância, a mãe, sempre dizia que Deus era quem valia as pessoas e só a Ele era cabível adoração. O Santo seria apenas uma espécie de intermediário, dada a sua reconhecida vida de santidade, embora, dizia ela, o intermediário por excelência era Jesus, o Salvador. E a imagem não passava de uma simples representação do Santo, como a fotografia de alguém de quem se gosta. Nada mais. Todavia, tudo isso é o que menos importa agora. O que me interessa mesmo é chegar ao desfecho sobre a pretensão de Tânia.
   
Veio a noite do baile, no sábado, exatamente a noite das famílias. A noite em que o foguetório só perdia para a noite anterior, a sexta-feira, que era a noite dos motoristas. Esta era imbatível em fogos de artifício. Noite das famílias. Noite do baile. Noite em que Tânia haveria de ser valida em face da promessa feita. Em que ela diria a Alfredo o que o seu coraçãozinho sentia. O “sim” de Alfredo acabaria com a sua agonia. Haveria de lhe propiciar uma noite de Cinderela. No baile estaria o seu príncipe encantado. E com ele, enfim, desencantado (ou ela era quem desencantaria?), ela teria a melhor de suas noites no clube. O melhor dos bailes. A mais bela noite de sua vida.
   
Na vida real os sonhos nem sempre se realizam. A noite dos sonhos de Tânia não se realizaria. No fim daquela tarde, a avó materna de Tânia teria um “piripaque”, deixando a família em alvoroço. A senhora ficara morre não morre. Fora levada ao hospital, na capital. D. Constância e Tânia tiveram que acompanhá-la. E aquela era a avó da predileção da mocinha. Tudo viera por águas abaixo. A promessa feita a Santo Expedito não incluía a saúde da avó. Porém, diante da doença de ente tão querido, Tânia não ficou desalentada por não ter dado certo o que houvera planejado. O desalento viria duas semanas depois que a avó saíra do hospital. No fim de uma aula de matemática, Alfredo entregou uns desenhos para Tânia avaliar. Eram desenhos de flores e paisagens. Contudo, no meio deles, Tânia se deparou com o que jamais gostaria de se deparar. Não acreditava no que estava vendo. Não era possível! Alfredo e Jorginho? Não! No meio dos desenhos de flores, Alfredo esqueceu um que não tinha nada a ver com paisagens ou flores. Era um retrato a grafite de Jorginho, da 7ª série, alto e forte, apesar da idade, e o melhor jogador de futebol da escola, com a seguinte inscrição: “Te amo!”. Tânia devolveu os desenhos sem dizer nada. Não tinha o que dizer. Chorou a noite inteira. Nem quis jantar. Já madrugada, ainda banhada em lágrimas e sem conseguir dormir, ela pensou: “E se o retrato não fosse presente de Alfredo para Jorginho? E se fosse encomenda de alguma menina, para presentear o garoto bom de bola?”. E assim ela adormeceu com os galos cantando o último canto naquela madrugada.

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 08 e 09 de fevereiro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

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