Racismo contribui para preconceito contra Cannabis medicinal
Médica Mirene Morais destaca que herança de criminalização da planta trava tratamento a milhões de pacientes.
Médica Mirene Morais, certificada internacionalmente em Cannabis medicinal - Foto: Jadilson Simões | Alese
Até o século 19, era recorrente o uso médico, no Brasil, de uma planta que, algumas décadas mais tarde, tornaria-se forte tabu: a Cannabis. Um dos principais fatores para a mudança da percepção pública no País foi o racismo, conforme apontam diversos estudos. “As primeiras políticas de proibição da planta foram idealizadas com base em perspectivas racistas, que tinham o objetivo de criminalizar práticas médico-religiosas e culturais da população negra”, ratifica a médica Mirene Morais, certificada internacionalmente em Cannabis medicinal.
Mirene, pós-graduada em dor pelo Hospital Sírio-Libanês, lembrou que o Brasil foi um dos primeiros países a proibir a Cannabis. Isso incluiu sua utilização medicinal, que, segundo extensa produção científica, contribui para o tratamento de sintomas de diversas doenças crônicas e neurológicas, a exemplo de câncer, mal de Parkinson, Alzheimer, esquizofrenia, depressão, ansiedade, entre outras.
Ela destacou um personagem crucial nesse processo: o médico brasileiro Rodrigues Dória. “Em 1915, ele indicou, no 2º Congresso Científico Pan-americano, nos Estados Unidos, que a planta havia sido introduzida no País pelos negros como uma forma de vingança pelo ressentimento à escravidão, além de ser usada para gerar alucinações. Na verdade, foram os próprios portugueses que trouxeram-na e até incentivaram o seu cultivo no Brasil”, afirmou Mirene, acrescentando que as cordas das caravelas portuguesas eram feitas de cânhamo, uma variedade da Cannabis.
A médica ressaltou, ainda, que a proibição no País foi influenciada pelos Estados Unidos, principal responsável por disseminar a ideia de que a Cannabis se tratava de um entorpecente perigoso. A posição, enfatizou ela, também tinha objetivo de criminalizar minorias étnico-raciais, a exemplo de imigrantes e negros. “Graças a isso, no século 20, a Organização das Nações Unidas (ONU) classificou a planta como um entorpecente nocivo, o que foi revisto em 2020. Hoje, os Estados Unidos são um dos países que mais avançam no uso medicinal da Cannabis no mundo, enquanto o Brasil sofre com a herança racista e anda a passos curtos”, disse.
Para Mirene, é necessário se entender de que forma se deu a proibição da Cannabis medicinal no Brasil, “porque se trata de uma narrativa construída em um determinado contexto sócio-histórico, pouco baseada em ciência e muito calcada no racismo”. Ela enfatizou que embora o uso médico não seja crime no País, ainda há muito a se progredir, uma vez que os medicamentos, aliados na redução do sofrimento de milhões de pacientes, são inacessíveis a boa parte da população.
“Além de causar outros diversos prejuízos à população negra, o racismo se coloca como um problema na saúde pública, impedindo o Brasil de avançar na regulamentação da Cannabis medicinal e reduzir a dor de pessoas de todas as cores e de todas as classes sociais. Precisamos, com urgência, rever o que foi estabelecido sob viés racista”, salientou a médica Mirene Morais.