Brasil lidera ranking global de ansiedade e acende alerta para burnout como distúrbio ocupacional
Reconhecido pela OMS e com nova classificação na CID-11, o burnout deixa de ser tabu e ganha espaço nas discussões sobre saúde mental no trabalho

Cansaço que persiste mesmo após uma boa noite de sono. Distanciamento emocional no ambiente profissional. Sentimento contínuo de improdutividade, mesmo se dedicando ao máximo às tarefas. Esses indícios, cada vez mais frequentes entre os brasileiros, não são apenas efeitos de um estresse passageiro: podem apontar para um distúrbio sério.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil está no topo do ranking global de transtornos de ansiedade, atingindo cerca de 9,3% da população. Além disso, é o segundo país com maior número de casos de depressão. Boa parte desse cenário está ligada às condições de trabalho, acendendo o alerta para uma condição específica: a síndrome de burnout.
Com o aumento no número de diagnósticos e a atenção mundial voltada à saúde mental dos trabalhadores, a nova versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) passou a reconhecer o burnout como um distúrbio ocupacional, com definição própria. Apesar de publicada em 2022, a nova classificação só será oficialmente adotada no Brasil em janeiro de 2027. Mesmo assim, ela já começa a influenciar práticas e o olhar sobre a saúde mental no ambiente de trabalho.
Burnout, ansiedade e depressão: como diferenciar?
Para o psiquiatra e professor da Universidade Tiradentes (Unit), Fellipe Campos, distinguir o burnout de outros transtornos como depressão e ansiedade é essencial para um diagnóstico assertivo e um tratamento eficaz. “Diferente do burnout, que está restrito ao ambiente de trabalho, a depressão e a ansiedade se estendem para várias esferas da vida. A ansiedade, por exemplo, não ocorre só no expediente. Já os pensamentos depressivos e os riscos de suicídio podem aparecer tanto em casa quanto no serviço. Esses transtornos acabam atingindo o cotidiano como um todo”, explica.
No caso do burnout, o gatilho está diretamente associado ao ambiente profissional. O agravamento se dá diante de estímulos ligados à rotina de trabalho: iniciar o expediente, abrir e-mails, escutar sons comuns do escritório. “Às vezes, o fim de semana deixa de ser relaxante porque a pessoa já está preocupada com a segunda-feira. Há até quem sinta uma ansiedade em feriados, pensando no acúmulo de tarefas. E quando chega em casa, vem uma sensação de alívio — mas não aquele alívio bom, de missão cumprida. É como se apenas tirasse um peso das costas”, detalha Fellipe.
Nova classificação da CID traz mais precisão ao diagnóstico
Com a entrada da CID-11, a síndrome de burnout passa a ter uma categoria específica, o que facilita a identificação do problema. Antes, o transtorno era frequentemente confundido com outros quadros psicológicos. Para o psiquiatra, essa atualização é um avanço relevante. “Um dos principais obstáculos era fazer com que o burnout fosse reconhecido. Vivemos uma cultura que sempre valorizou o trabalho extremo. Na medicina, por exemplo, era comum ouvir que ser médico era um 'celibato', uma entrega total. Isso até fazia algum sentido, por conta da complexidade da profissão, mas também camuflava os riscos da exaustão. Inclusive, médicos têm uma expectativa de vida menor que a média da população, o que reflete essa sobrecarga”, aponta.
Segundo Fellipe, combater o burnout exige uma abordagem conjunta, envolvendo diversas áreas: psiquiatria, psicologia, medicina do trabalho e, sempre que possível, a empresa. “Às vezes, basta ajustar a rotina. Em outras situações, é preciso reavaliar a função exercida ou, em casos extremos, considerar o desligamento com o devido suporte, para que o profissional encontre um ambiente mais saudável”, sugere.
Além do cuidado clínico, as empresas também precisam se engajar. “O setor de Recursos Humanos pode ser a ponte entre colaboradores e a gestão. O ideal seria que todas as organizações oferecessem algum tipo de apoio psicológico ou psiquiátrico, mesmo que por meio de parcerias externas”, comenta Fellipe. Ele reconhece que isso ainda está distante da realidade de muitas pequenas empresas, mas reforça que investir em saúde mental ajuda a prevenir afastamentos e melhora a qualidade de vida no trabalho.
Ações simples com grandes resultados
Fellipe destaca iniciativas que, mesmo modestas, têm gerado impactos positivos, como o programa “Cuidando do Cuidador”, da rede de atenção psicossocial de Aracaju. O projeto promove pausas, práticas integrativas e espaços de escuta para profissionais da saúde. “Ainda que não resolvam todos os problemas, essas ações proporcionam um alívio momentâneo da carga emocional acumulada no trabalho”, observa.
Hoje, há uma consciência maior de que a saúde do trabalhador não se resume à integridade física, como evitar acidentes ou exposição a substâncias nocivas, mas também envolve o bem-estar mental. “É comum associar o burnout ao cansaço excessivo, mas é importante entender que se trata de um transtorno diretamente ligado ao trabalho. Não estamos falando de esgotamento por cuidar de um familiar doente ou por questões pessoais. Burnout é, essencialmente, uma síndrome ocupacional”, explica o especialista.
Também é preciso desfazer a ideia de que trabalhar até o limite é sinônimo de produtividade e sucesso. “O trabalho é essencial, claro, mas deve ser exercido com equilíbrio e atenção à saúde. Produzir muito às custas do próprio bem-estar não vale a pena. É fundamental observar como você está se sentindo no ambiente profissional. Se houver sinais como cansaço extremo, distanciamento emocional e sensação de inutilidade, é hora de procurar ajuda. Identificar cedo faz toda a diferença no tratamento”, orienta Fellipe.
Mais visibilidade, mais transformação
Segundo Fellipe, o aumento das discussões sobre burnout tem promovido mudanças significativas. “A popularização do termo ajudou a trazer à tona um problema que antes era invisível. Isso tem gerado maior atenção por parte de empresas e gestores, e também estimulado os profissionais a buscarem mais qualidade de vida”, destaca. Ele ressalta a importância de avaliar não só a carga horária, mas também a intensidade da jornada de trabalho. “Uma comunicação eficiente entre líderes e equipes é essencial para evitar tanto a sobrecarga quanto a falta de desafios”, completa.
Esse movimento também tem impulsionado a criação de leis e políticas públicas voltadas à saúde mental no ambiente profissional, o que representa um avanço para toda a sociedade. “Hoje entendemos que a saúde do trabalhador vai além dos aspectos físicos. A parte emocional precisa estar no centro dos debates. Afinal, todos nós trabalhamos para viver e não o contrário. O ideal é fazer isso com equilíbrio, cuidado e saúde”, finaliza o psiquiatra.